Hölderlin, fragmento de "Hipérion"

"O primeiro filho da beleza humana, divina, é a Arte. Nela o homem divino rejuvenesce e repete-se a si próprio. Quer sentir-se a si próprio, por isso coloca diante de si a Beleza. Assim, o homem dotou-se dos seus Deuses. Pois que, no princípio, o homem e os seus Deuses foram Um, já que, desconhecida para si própria vigorava a Beleza eterna: eu falo de Mistérios, mas eles são.
O primeiro filho da Beleza divina é a Arte. Assim foi entre os atenienses.

O segundo filho da Beleza é a Religião. Religião é amor à Beleza. O sábio ama-a a ela mesma, a infinita, a universal. O povo ama os filhos dela, os Deuses que se lhe defrontam nas figuras mais variadas. Assim também foi com os atenienses. E sem um tal amor à Beleza, sem uma tal Religião, qualquer estado é um esqueleto ressequido, sem vida e sem espírito, e todo pensar e agir é uma árvore sem cume, uma estela da qual foi ceifado o capitel.

Muito bem! Interrompeu-me alguém, isso compreendo, mas como esse povo poético e religioso (os atenienses) pode ser, também um povo de filósofos, não estou a ver.
Eles até sem a Poesia, disse eu, nunca se teriam tornado um povo filosófico!
O que tem a Filosofia, retorquiu, o que tem a fria altivez desta ciência, a ver com a Poesia?

A Poesia, disse eu, certo do meu ponto de vista, é o princípio e o fim desta ciência. Como Minerva da cabeça de Júpiter, ela nasce da Poesia, de um ser infinito e divino. E assim, no fim, também acaba por convergir novamente nela o incontornável, na fonte misteriosa da Poesia.

Do mero intelecto não nasce qualquer Filosofia, porque a Filosofia é mais do que, apenas, a compreensão limitada do que é.

Da mera razão não nasce qualquer Filosofia, porque a Filosofia é mais do que a exigência cega de um progresso que nunca termina na unificação e distinção de uma possível matéria.

Mas se o Divino luzir en diaferon heautó, o ideal da Beleza da razão perscrutadora então não exige cegamente, e sabe por que motivo exige e para quê.
Se, como o dia de Maio na oficina do artista, o Sol da Beleza iluminar a ocupação do intelecto, este não voa para longe deixando para trás seu trabalho provisório, mas pensa com agrado no dia de festa em que caminhará na rejuvenescente luz primaveril.”

Por que fico na Província? (1934) M. Heidegger


Na íngreme encosta de um grande vale no sul da Floresta Negra, numa elevação de 1150 metros, lá está uma pequena cabana de esqui. O chão plano mede 6x7 metros. O teto baixo cobre três cômodos: a cozinha que é também a sala de estar, um quarto e um quarto de estudo. Dispostas em grandes intervalos através da estreita base do vale e na encosta oposta igualmente íngreme, estão as fazendas com seus largos telhados. Mais acima na encosta, os prados e pastos levam a floresta com seus abetos escuros, velhos e muito altos. Sobre tudo lá se destaca um claro céu de verão, e em sua expansão radiante dois falcões deslizam em torno em largos círculos.
Este é meu mundo de trabalho – visto com os olhos de um observador: um hóspede ou alguém tirando férias de verão. Estritamente falando eu mesmo nunca observo a paisagem. Experiencio suas mudanças de hora em hora, dia e noite, no grande ir e vir das estações. A gravidade das montanhas e a dureza de sua rocha primitiva, o vagaroso e cauteloso crescimento dos abetos, o brilhante e simples esplendor dos prados em flor, o lançar-se do ribeiro da montanha na longa noite de outono, a simplicidade austera das terras planas cobertas de neve – tudo isto se move e flui e penetra a existência diária lá, e não em momentos forçados de uma imersão “estética” de empatia artificial, mas apenas quando uma existência própria está em trabalho. É este trabalho somente que abre espaço para a realidade que há nestas montanhas. O curso do trabalho permanece incorporado no que acontece na região.
Em uma noite profunda de inverno quando uma selvagem tempestade enfurece-se batendo em volta da cabana e oculta e cobre tudo, este é o momento perfeito para filosofia. Então as questões devem vir simples e essenciais. Trabalhar cada pensamento pode apenas ser duro e rigoroso. A luta para moldar algo na linguagem é como a resistência dos abetos contra a tempestade.
E este trabalho filosófico não toma seu curso como um estudo indiferente de algum excêntrico. Ele pertence bem ao meio do trabalho do camponês. Quando o jovem fazendeiro arrasta seu pesado trenó na encosta guiando-o cheio de troncos de faia e vai abaixo para a perigosa descida até a sua casa, quando o pastor, perdido em pensamentos e vagaroso em seus passos, dirige seu gado na encosta, quando o agricultor em seu barracão recebe as inúmeras telhas prontas para seu telhado; meu trabalho é do mesmo tipo. Ele é intimamente arraigado e referenciado à vida dos camponeses.

Um morador da cidade pensa que está “entre o povo” tão logo ele condescende ter tido uma longa conversa com um camponês. Mas no final de tarde durante um internvalo no trabalho, quando sento com os camponeses perto do fogo ou numa mesa no “Lord’s Corner”, nós, na maior parte das vezes, não dizemos absolutamente nada. Fumamos nossos cachimbos em silêncio. De vez em quando alguém diz que o corte de madeira na floresta está terminando, que uma marta invadiu o galinheiro na noite anterior, que uma das vacas provavelmente vai dar a luz na manhã seguinte, que o tio de alguém sofreu um derrame, que o tempo vai “virar”. A íntima relação do meu trabalho com a Floresta Negra e seu povo vem de séculos atrás, na insubstituível raíz do solo suabo-alemão.
No máximo, um morador da cidade fica “estimulado” pela chamada “estada no campo”. Mas todo meu trabalho é sustentado e guiado pelo mundo dessas montanhas e seu povo. Ultimamente de tempos em tempos, meu trabalho lá é interrompido por longos intervalos para dar conferências, viagens para palestrar, comitês, reuniões, e meu trabalho de ensino aqui em Freiburg. Mas tão logo eu volte pra lá, mesmo nas primeiras horas da estada na cabana, todo o mundo de questões que estavam anteriormente lá antes de eu sair força-se sobre mim, e da mesma forma que o deixei. Eu simplesmente sou transportado para o ritmo do trabalho, e num sentido fundamental não estou de forma alguma no comando de sua lei oculta. As pessoas na cidade sempre perguntam-se se alguém se sente sozinho nas montanhas entre os camponeses por tanto tempo e períodos tão monótonos de tempo. Mas não é um“estar sozinho” – é a solidão. Em grandes cidades pode-se facilmente ser tão sozinho como em nenhum outro lugar. Mas nunca se pode estar em solidão lá. A solidão tem um poder original e peculiar, não de isolar-nos, mas de projetar todo nosso existir para fora, na vasta proximidade da presença de todas as coisas.

No mundo público pessoas tornam-se celebridades da noite para o dia, através de jornais e revistas. Isto sempre permanece o caminho mais certo para ter as intencões mais próprias de alguém mal interpretadas ou rapidamente esquecidas. Em constraste, a memória do campones tem sua certa e simples fidelidade que nunca se esquece. Recenetemente uma velha camponesa  estava chegando perto da morte. Ela gostava de conversar comigo frequentemente, e ela me contou muitas histórias da vila. Na sua língua rústica, cheia de imagens, ela ainda preservava muitas das antigas palavras e vários ditos que se tornaram ininteligíveis para a juventude da vila hoje em dia e por isso estão perdidas para a linguagem falada. Muitas vezes no ano passado, fiquei só na cabana por semanas a fio, e esta camponesa com seus 83 anos ainda vinha subindo a encosta para visitar-me. Ela queria de tempos em tempos, como ela colocava, ver se eu ainda estava lá ou se alguém tinha me roubado de surpresa. Ela passou a noite de sua morte numa conversa com sua família. Apenas uma hora e meia antes do fim, ela mandou saudações ao “Professor”. Uma tal memória vale incomparávelmente mais do que o mais astuto relato de qualquer jornal internacional sobre minha alegada filosofia.

O mundo da cidade corre o risco de cair num erro destrutivo. Uma moderna impertinência muito barulhenta e muito ativa frequentemente passa por lá, e é a preocupação para o mundo e a existencia do camponês. Mas isto vai exatamente ao contrário da única coisa que agora precisa ser feita, a saber, o manter-se à distância da vida do camponês, deixar sua existência mais do que nunca à sua própria lei, manter as mãos fora deles para que eles não sejam arrastados para a desonestidade da conversa literata sobre “personagens populares” e “raízes no solo”. O camponês não precisa e não quer esta oficialidade. O que ele precisa e quer é a quieta reserva, por respeito à sua própria forma de ser e sua independência. Mas hoje em dia, muitas pessoas da cidade, do tipo que “sabe de tudo” e também todos os esquiadores, frequentemente se comportam na vila ou na casa de um agricultor da mesma forma como quando eles “se divertem” nos seus centros de recreação na cidade. Tais ocorrências  destroem  mais em uma noite do que o que séculos de ensino escolar sobre “folclore” poderiam de longe promover.

Vamos parar com toda essa condescendência familiar e falsa preocupação por “personagens populares” e vamos aprender a levar a sério a rústica e simples existência que há lá. Só assim ela falará conosco uma outra vez.

Recentemente recebi um segundo convite pra ensinar na Universidade de Berlin. Naquela ocasião eu deixei Freiburg e me retirei para a cabana. Escutei o que as montanhas e a floresta e as terras estavam dizendo, e fui ver um velho amigo meu, um agricultor de 75 anos. Ele leu sobre o convite de Berlin nos jornais. O que ele diria? Vagarosamente ele fixou o firme olhar de seus claros olhos nos meus, e mantendo sua boca levemente fechada, ele atenciosamente pôs sua mão fiel no meu ombro. Nunca tão pouco ele balançou a cabeça. E isto quis dizer: não absolutamente!




(Tradução: Manuela S.)

Breve ensaio sobre a relação entretida entre História, Poesia e Linguagem no âmbito da Filosofia de Martin Heidegger

Orientando-nos pela investigação procedida por Martin Heidegger acerca do fundamento poético-histórico da linguagem, este breve texto apresenta-se como uma proposta de estudo em vista da compreensão da relação entretida entre poesia, linguagem e História.  Tal estudo se pretende como um passo prévio para a investigação da ontologia de Heidegger, e a ele nos orienta a própria afirmação do filósofo, em seu ensaio Cartas  sobre o Humanismo, de que a questão privilegiada em Ser e Tempo: o esquecimento do Ser, lhe foi fornecida pela poética de Friedrich Hölderlin.

Nestes termos, procuraremos compreender a tarefa própria da linguagem e da história (de forma privilegiada da história do pensamento), bem como a origem de ambos os fenômenos e o caráter indissociável do seu vínculo com o saber da poesia. E isto com o intuito de aprender sob que circunstâncias Heidegger determinou a poesia como fundamento da História e da linguagem, e colocou tal determinação como problema privilegiado para a investigação filosófica.

Para Heidegger, a História é (dá-se) enquanto o curso do discurso que constitui o Ser do homem – o seu Dasein, enquanto ser-no-mundo.  Ao seu ver, enquanto constituição do Ser do homem,  a história não se determina apenas enquanto a factualidade de tempos passados nem atuais, nem muito menos enquanto verificação de fatos ocorridos em tais tempos. Bem antes, a História determinando-se enquanto discurso constitutivo do existir humano estabelece de partida os modos e as orientações deste existir na sua totalidade, nesta ou naquela atualidade. Mas o que significa para Heidegger pensar a História enquanto curso de um discurso? Significa abordá-la na perspectiva da estrutura ser-no-mundo, a qual se propõe enquanto fator determinante do existir humano e se deixa compreender nos termos de um destinamento do Dasein no interior da linguagem, em vista do próprio poder-ser deste. Ou seja, se o Ser do homem se destina necessariamente na linguagem, tanto o poder-ser (fático) deste Ser quanto o seu meio de possibilidade, por seu próprio caráter de destinamento, deverão se determinar enquanto curso necessariamente histórico de um discurso.

Sempre orientado pela perspectiva de Hölderlin, Heidegger estabelece: “Cheio de mérito, contudo poético, mora o homem sobre esta Terra.” Esta citação do poema Num azul ameno, de Hölderlin, é o fio condutor que Heidegger oferece à investigação filosófica para pensar sobre o sentido próprio tanto do que seja História, quanto linguagem e ainda poesia. Assim, tomar este fio condutor oferecido pelo filósofo para problematizar o existir humano sobre o fundamento desta tríade fenomênica significa ascender a uma perspectiva que poderá dar a ver a estrutura que rege tudo a que tal existir está originariamente ligado e que o influencia a todo momento silenciosa e imperiosamente.

A tarefa da linguagem enquanto casa do Ser é guardar a verdade do Ser para o homem em sua moradia (permanência) sobre esta Terra. Tal verdade se dá originariamente na poesia. Esta aqui se revela enquanto a abertura privilegiada do real, pelo fato que a poesia constitui a linguagem primordial, portanto o saber primordial, dos povos. E isto, ainda de acordo com o ensinamento de Hölderlin: “Desde que somos um diálogo”.
    Sobre o caráter próprio e essencial de diálogo da linguagem, Heidegger esclarece que esta proposição “Desde que somos um diálogo” não pretende nomear o diálogo enquanto mera prática cotidiana entre sujeitos interlocutores; nomeia antes o acontecimento essencial e originário da linguagem a partir do qual se determina a história e o mundo (este aqui âmbito de possibilidade e de significação erigido pelo existir em vista do seu poder-ser). E uma vez que o mundo só pode vir à linguagem na medida em que o real (ente) interpela e reivindica a todo momento o existir em seu destinamento (projeção) para o seu poder-ser, o ser histórico e o ser um diálogo se tornam por fim o mesmo.

    Mas quem media um tal diálogo entre homens com e acerca do real? O poeta é aquele que traduz e torna manifesta a reivindicação do real, instituindo a permanência desta reivindicação no dizer essencial da poesia – “Mas o que permanece, instituem-no os poetas”. Isto o afirma Hölderlin em seu poema Recordar. Instituir o permanente, Heidegger o ensina, é proteger a linguagem contra a dissipação cotidiana e guardar na palavra essencial a nomeação do Ser do real. Poesia é instituição originaria do Ser contido na palavra, e fundamentação histórica de um povo.


(por M.S.)

Iki

Japanese: ...But speaking only by large, I may attempt to detach Iki, which we just translated with "grace", from aesthetics, that is to say, from the suject-object relation. I do not now mean gracious in the sense of a stimulus that enchant...

Inquirer: If we keep this reservation in mind, there is no harm in your trying to give the explication..

J: Iki is the breath of stillness of luminous delight.

I: You understand delight literally, then, as what carries away into stillness. The delight is of the same kind as the hint that beckons to and fro.

J: The hint, however, is the message of the veiling that opens up.

I: Then all presence would have its source in grace, in the sense of the pure delight of the beckoning stillness.



M. Heidegger, "On the Way to Language"

Germania – (A “Terra Mater Nerthus”)

" Ela não é honrada entre todos os alemães, mas apenas entre uma comunidade de tribos Suábias, que acreditam que ela considera as coisas humanas, e que viajou para estar entre os povos. Numa ilha do Oceanus, há um bosque sagrado com uma oferenda sacrificial providenciada, uma carruagem adornada com um tecido. Somente ao sacerdote é permitido tocá-la. Ele reconhece a presença da Deusa na região sagrada e, arreiando o gado, ele acompanha a Deusa em suprema reverência. Feliz então são os dias, e festivos são os locais que a Deusa em toda parte honra por sua vinda e por ser uma hóspede. Nenhuma guerra é então conduzida. Não há armas apreendidas. O ferro também é afastado; a paz e a quietude agora precalecem, agora só encontra-se o amor – até que o mesmo sacerdote, quando a Deusa ficou já bastante junto aos mortais, retorna-a para o seu reino sagrado. A carruagem e os adornos e, se você acreditar nisso [si credere velis], a presença da Deusa ela mesma são imediatamente lavados em um lago oculto. Este serviço é realizado por escravos, os quais são engolidos por este mesmo lago. Disso deriva o terror oculto e a ignorância sagrada concernentes àquilo que é visto apenas por aqueles que são destinados à morte."


 Tacitus, historiador romano, capt. 40 de seu Germania – (A “Terra Mater Nerthus”)

Parmênides: um pensador primoroso da forma do Ser enquanto verdade – um pensador do Princípio

Talvez o texto filosófico mais obscuro legado à história do pensamento ocidental, ou quem sabe assim tornado pelo curso desta própria história, seja o “poema doutrinário” de Parmênides de Eléia. Quando procuramos trazer alguma clareza sobre o seu teor metafísico, ou seja, sobre a sua problemática filosófica, sentimo-nos inteiramente desamparados se recorremos à sua interpretação praticada ao longo da história. Desde Platão, com efeito, a apreensão originária do Ser conquistada por Parmênides é sempre abordada sob a lente de uma ontologia de orientação lógica – esse é o modo no qual o pensamento filosófico vem cursando a história.

Neste breve ensaio, propomo-nos apenas apontar a nossa compreensão do que seja o esclarecimento de Heidegger da questão metafísica concernente a esta obra de Parmênides, indicando duas questões fundamentais privilegiadas pelo filósofo contemporâneo e tomadas por ele enquanto pedra de toque do poema doutrinário. Ambas as questões estão imbricadas em caráter necessário. A primeira concerne ao esclarecimento da Deusa apresentada no poema. Esta personagem insigne, Heidegger a identifica enquanto a configuração excelente da verdade. A Deusa presente no poema doutrinário de Parmênides é finalmente a Deusa Αλήθεια. Esta é a partida desde a qual o filósofo Grego enceta a sua apresentação do sentido da verdade, sentido este norteador de todo o poema. A verdade é, precisamente, o motivo privilegiado do poema de Parmênides.

Ao identificar a Deusa com a verdade, Heidegger pretende trazer à luz uma determinação radical do conceito Grego de verdade, apontando o caráter peculiar da excelência deste conceito num determinado momento histórico, e pretende ainda dar a ver o modo como esta excelência se torna essencialmente distinta a partir do pensamento platônico-aristotélico até distanciar-se inteiramente do seu princípio Grego na Modernidade.

A segunda questão concerne ao esclarecimento que Heidegger concede do sentido Grego do fenômeno da verdade, fazendo consonar com a palavra com que o idioma Grego designa o fenômeno. Começamos pela segunda questão como meio de nos habilitarmos a dar o primeiro passo de volta rumo ao princípio (a primeira questão).

O ensaio Parmênides é uma apresentação pormenorizada do sentido Grego da verdade e do processo histórico de sua transformação no Ocidente. Ao abordar a compreensão Grega do sentido de verdade partindo de um esclarecimento da feição etimológica da palavra αλήθεια, Heidegger procura instaurar o próprio fundamento do fenômeno na linguagem. Αλήθεια é a ocorrência de descerramento produzida pela linguagem, ocorrência esta que tem lugar no seio de uma cerração originária. Nestes termos, ela é um fenômeno de clareira no interior da qual dá-se a descerração de uma cerração e sempre de novo a cerração de uma descerração. Ocorrendo no seio de uma cerração enquanto âmbito originário de sua possibilidade, a αλήθεια se revela enquanto uma ocorrência concernente a este próprio âmbito, ao qual Heidegger nomeia de ληθέ. Do ponto de vista puramente etimológico já vemos que a verdade é concebida de modo Grego nos termos de uma contra-dicção. Desta forma a αλήθεια deve ser apreendida enquanto a luta essencial da cerração com ela própria. E enquanto tal, ela não pode nunca ser configurada na forma de uma distinção pura e simples de algo outro que ela mesma. Isto significa dizer que em termos rigorosamente gregos a verdade não pode ser configurada na forma de uma mera distinção por respeito ao um falso suposto como seu outro. Αλήθεια é antes a diferença compreendida enquanto diferenciação do Um nele mesmo.

Atendo-nos ao contexto do Poema de Parmênides, compreendemos que esta configuração do Ser da verdade, que Heidegger apresenta-nos, favorece inteiramente ao esclarecimento do difícil argumento da necessidade do ensino do caminho de desvio da verdade, que a Deusa concede concomitantemente ao ensino do caminho próprio. Através da lente da filosofia de Heidegger podemos compreender que o outro caminho se dá enquanto efeito de luz produzido pela luta do descerramento com a cerração. Este outro caminho é o caminho dissimulador enquanto o qual a cerração se faz prevalecer sob tantos modos, nos diversos momentos da luta. Ele é a forma da resistência à clareira, não como sua negação, antes como afirmação do caráter agônico de sua essência – clareira é a doação que a luta característica da cerração originária faz ao existir humano enquanto linguagem.

Clareira, portanto, não é a mera conseqüência de um descerramento, é, com efeito, a abertura fundamental para todo descerramento possível, e desta forma ela é o descerramento ele mesmo, ainda que este não seja toda a clareira. Esta ocorrência da clareira (do aberto originário) no seio da cerração – ocorrência proveniente da luta da cerração com o outro de si mesma é o que Heidegger caracteriza enquanto o fenômeno próprio da liberdade. Esta aqui enquanto o aberto constituinte da clareira é o próprio espaço de jogo concedido pela e para a luta – a própria arena do Ser. É no interior desse espaço que pode se erigir um Mundo, ele próprio enquanto “âmbito continuamente mutante de decisão e produção, de ação e responsabilidade, mas também de arbitrariedade e burburinho, queda e desnorteamento”.

Se a clareira é concedida pela liberdade, se ela se abre enquanto mundo gerado nas entranhas da Deusa ’Eρις (luta) é certo que ela há de aclarar tanto quanto dissimular o caminho do próprio descerramento para os mortais. Daí surgir a possibilidade de um caminho desviante, cujo sentido a Deusa Αλήθεια precisa ensinar ao poeta-pensador enquanto aquilo que ele deve ensinar aos homens, senão em seu motivo essencial de desvio, ao menos na configuração do seu desdobramento fáctico na existência dos mortais.


Esboçado aqui o esclarecimento que Heidegger concede do sentido Grego do fenômeno da verdade, sem nos deter na apresentação do filósofo do processo histórico desfigurador da verdade e do seu oposto, e isto para atermo-nos ao nosso propósito de nos restringir ao âmbito estrito do Poema de Parmênides, podemos agora apontar em que sentido devemos compreender o intuito de Heidegger de apresentar-nos enquanto um fenômeno unitário a verdade e a Divindade. Heidegger compreende que Parmênides associa à Deusa ao próprio tema do seu discurso, porque entende que para o pensador primordial que foi Parmênides nenhuma verdade poderia ser proferida senão por meio da própria Divindade. Quem narra é a Deusa, e o poeta apenas repete o que ouve – não por acaso as Musas são em número de nove, narrando aos poetas cada qual a verdade do tema de que elas mesmas se constituem. Assim, quando a narração concerne à verdade ela mesma, cabe mostrar que aqui fala a própria Divindade sobre si mesma. Porque a verdade, em seu sentido complexo de liberdade, luta, de cerração e clareira constitui o próprio caráter divino do Ser – ela é, nestes termos, a Divindade ela própria. E só por isto a sua palavra fundamental, primordial, é Mito. É nesta perspectiva que podemos compreender que o pensador primordial da verdade é necessariamente um pensador do Princípio.

Nosso propósito aqui foi apenas o de apresentar num esboço, a compreensão de Heidegger do teor problemático do Poema doutrinário de Parmênides. Elegemos as duas questões acima abordadas porque acreditamos que elas se prestam perfeitamente como fio condutor para o estudo tanto de sua interpretação da obra de Parmênides quanto do pensamento Grego pré-socrático. Acreditamos que a partir da perspectiva aqui fixada, possamos posteriormente dar continuidade ao estudo desta obra irrefutável de Heidegger.

(por M.S.)



Referências:

Bornheim, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.

Heidegger, Martin. Parmenides. Translated by Andre Schuwer and Richard Rojcewicz Bloomington: Indiana University Press, 1998.

______________ . Elucidations of Hölderlin’s Poetry. Translation: Keith Hoeller. New
York: Humanity Books, 2000.

A Alma escolhe

A Alma escolhe a sua Sociedade
E fecha a porta
Na sua divina Majestade
Nem um mais comporta

Indiferente — vê carros parando
No seu Portão
Indiferente se um Rei se ajoelha
Ali no chão

Sei que ela — de uma ampla nação —
Escolheu Um
Depois fechou as valvas de sua atenção
Como pedra.
                                                                                                                                        
Emily Dickinson