Hipérion

Hipérion, Hipérion! 
Cálida tua alma sempre
Abranda os surtos de meu peito.
Serás tu o salvador? O grande guerreiro do poente?
E teu amigo, Alabanda? 
Ferve em brasa e forja o futuro
Amor maior, que sente teus direitos
Na pessoa da humanidade!

Ser grande como tu anseia meu espírito
E todo sacrifício é bem-vindo.
Mas enquanto não posso saudá-lo
Acolho as palavras do teu coração, bravo
Como o amadurecer das uvas, puro
Como as águas da fonte do Reno.

Sem elas seria eu já menos que ninguém
Já não cantaria o rouxinol
Nem dançariam as palmeiras reais bailarinas.
Já nada faria sentido.

No entanto, sou inefavelmente feliz contigo! 
Tantas vezes sucumbi nos teus braços para deles despertar
Com ânimo quase invencível... 
Por vezes fui purificado
Por teu fogo, como aço.

Por isso espero que o triste intelecto 
Saia de si e contemple a sacralidade necessária 
À Vida e à Morte. Vós sois o caminho deste povo desolado! 
Junto ao Mestre recente sei que caminharás, 
ébrio da taça escura,
Na rejuvenescente luz primaveril.


- M.S.

O CAMINHO DO CAMPO

Este texto, de autoria do brilhante filósofo alemão Martin Heidegger, foi escrito no outono de 1948 e publicado numa obra de autoria coletiva celebrando o centenário (1949) da morte do compositor Conradin Kreutzer, aliás parente distante de Heidegger. A presente tradução, feita por Ernildo Stein e José Geraldo Nogueira Moutinho, foi publicada no 4º número da revista "Cavalo Azul", dirigida pela poetisa e tradutora Dora Marianna Ferreira da Silva, viúva de Vicente Ferreira da Silva.

*


Do portão do Jardim do Castelo estende-se até as planícies úmidas do Ehnried. Sobre o muro, as velhas tílias do Jardim acompanham-no com o olhar, estenda ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço entre as sementeiras que nascem e as campinas que despertam, ou desapareça, pelo Natal, atrás da primeira colina, sob turbilhões de neve. Próximo da cruz do campo, dobra em busca da floresta. Sauda, de passagem, à sua orla, o alto carvalho que abriga um banco esquadrado na madeira crua.

Nele repousava, às vezes, este ou aquele texto dos grandes pensadores, que um jovem desajeitado procurava decifrar. Quando os enigmas se acotovelavam e nenhuma saída se anunciava, o caminho do campo oferecia boa ajuda: silenciosamente acompanha nossos passos pela sinuosa vereda, através da amplidão da terra agreste.


O pensamento sempre de novo às voltas com os mesmos textos ou com seus próprios problemas, retorna à vereda que o caminho estira através da campina. Sob os pés, ele permanece tão próximo daquele que pensa quanto do camponês que de madrugada caminha para a ceifa.


Mais freqüente com o correr dos anos, o carvalho à beira do caminho leva a lembrança aos jogos da infência e às primeiras escolhas. Quando, às vezes, no coração da floresta tombava um carvalho sob os golpes do machado, meu pai logo partia, atravessando a mataria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo de madeira destinado à sua oficina. Era lá que trabalhava solícito e concentrado, os intervalos de sua ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos, que, uns e outros, mantêm relação própria com o tempo e a temporalidade.

Os meninos, porém, recortavam seus navios na casca do carvalho. Equipados de banco para o remador e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach ou no lago da escola. Nesses folguedos, as grandes travessias atingiam facilmente seu termo e facilmente recobravam o porto. A dimensão de seu sonho era protegida por um halo apenas discernível, pairando sobre todas as coisas. O espaço aberto era-lhe limitado pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se passava como se sua discreta solicitude velasse sobre todos os seres. Essas travessias de brinquedo nada podiam saber das expedições em cujo curso todas as margens ficam para trás. Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente, da lentidão e da constância com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente as duas coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz.

Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu destino. O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele; e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos campos, as mesmas encostas da colina escoltam o caminho em cada estação, próximos dele com proximidade sempre nova. Quer a cordilheira dos Alpes acima das florestas se esbata no crepúsculo da tarde, quer de onde o caminho ondeia entre os outeiros a cotovia da manhã se lance no céu de verão, que o vento leste sopre a tempestade do lado em que jaz a aldeia natal da mãe, quer o lenhador carregue, ao cair da noite, seu feixe de gravetos para a lareira, quer o carro da colheita se arraste em direção ao celeiro oscilando pelos sulcos do caminho, quer apanhem as crianças as primeiras primaveras na ourela do prado, quer passeie a neblina ao longo do dia sua sombria massa sobre o vale, sempre e de todos os lados fala, em torno do caminho do campo, o apelo do Mesmo.

O Simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os homens inesperadamente, mas carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O dom que dispensa está escondido na inaparência do que é sempre o Mesmo. As coisas que amadurescem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em sua plenitude dão o mundo. Como diz o velho mestre Eckhart, junto a quem aprendemos a ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que Deus é verdadeiramente Deus.

Todavia, o apelo do caminho do campo fala apenas enquanto homens nascidos no ar que os cerca forem capazes de ouví-lo. São servos de sua origem, não escravos do artifício. Em vão o homem através de planejamentos procura instaurar uma ordenação no globo terrestre, se não for disponível ao apelo do caminho do campo. O perigo ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua linguagem. Em seu ouvido retumba o fragor das máquinas, que chega a tomar pela voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entendiados só vêem monotonia a seu redor. O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se.

O número dos que ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram, diminui, não há dúvida, rapidamente. Esses poucos, porém, serão, em toda a parte, os que permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo, poderão sobreviver um dia às forças gigantescas da energia atômica, que o cálculo e a sutileza do homem engendraram para com ela entravar sua própria obra.

O apelo do caminho do campo desperta um sentido que ama o espaço livre e que, em momento oportuno, transfigura a própria aflição na serenidade derradeira. Esta opõe-se à desordem do trabalho pelo trabalho: procurado apenas por si, o trabalho promove aquilo que nadifica.

Do caminho do campo ergue-se, no ar variável com as estações, uma serenidade que sabe, e cuja face parece muitas vezes melancólica. Esta gaia ciência é uma sagesa sutil [1]. Ninguém a obtém sem que já a possua. Os que a têm, receberam-na do caminho do campo. Em sua senda cruzam-se a tormenta do inverno e o dia da messe, a irrupção turbulenta da primavera e o ocaso tranqüilo do outono; a alegria da juventude e a sabedoria da maturidade nela surpreendem-se mutuamente. Tudo porém se insere placidamente numa única harmonia, cujo eco o caminho do campo em seu silêncio leva de um para outro lado.
A serenidade que sabe é uma porta abrindo para o eterno. Seus batentes giram nos gonzos que um hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da existência.

Das baixas planícies do Ehnried, o caminho retorna ao Jardim do Castelo. Galgando a última colina, sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega às muralhas da cidade. Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia sobre as coisas. Atrás do Castelo alteia-se a torre da Igreja de São Martinho. Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas, desfazendo-se no ar noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de menino se aqueciam rudemente, treme sob o martelo das horas, cuja silhueta jocosa e sombria ninguém esquece.

Após a última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até aqueles que foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O Simples torna-se ainda mais simples. O que é sempre o Mesmo desenraiza e liberta. O apelo do caminho é agora bem claro. É a alma que fala? Fala o mundo? Ou fala Deus?

Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar uma distante Origem, onde a terra natal nos é devolvida.






[1] Literalmente: "Este alegre saber é das Kuinzige". Este termo dialetal, próprio da Suábia do Sul (onde se encontra Messkirch, cidade natal de Heidegger), corresponde etimologicamente a Keinnützig, "bom para nada", "próprio para nada", cujo sentido passou para o de "travesso", "malicioso", e finalmente hoje designa um estado de serenidade livre e alegra, que gosta de se ocultar, marcada por uma ironia afetuosa e por um toque de melancolia: melancolia sorridente, sabedoria que apenas se comunica discretamente nas palavras. Estas informações foram dadas pelo próprio autor a Adré Préau, tradutor francês deste texto, que em seu trabalho opta pela forma "sagesse malicieuse" (vide Martin Heidegger, "Questions III", Éditions Gallimard, 1966, Paris). Ao propor em português a tradução "sageza gentil", quisemos ressucitar um velho vocábulo corrente na língua do século XVI, cuja afinidade com o francês "sagesse" comunica um pouco do indefinível conteúdo da expressão dialetal preferida por Heidegger [NOTA DO TRADUTOR].

Diálogo num final de tarde entre um jovem e um velho, em um campo de prisioneiros de guerra na Rússia

 de Martin Heidegger 


Tradução: Manuela Santos



Jovem: Enquanto marchávamos para nosso lugar de trabalho nesta manhã, enquanto ouvia o ruído da ampla floresta, fui repentinamente dominado por algo curador [Heilsames].  Por todo o dia meditei onde e em que este algo que cura poderia repousar.

Velho: Talvez isto seja o inesgotável – a amplidão que se oculta – que habita estas florestas da Rússia.

J: Você provavelmente quer dizer que o vasto, que prevalece na amplidão, nos traz algo libertador.

V: Eu não penso apenas no vasto da amplidão, mas penso também que esta amplidão nos conduz para fora e para trás.

J: O vasto da floresta oscila em uma distância velada, mas ao mesmo tempo oscila voltado  para nós sem findar em nós.

V: É quase como se, da aberta e ao mesmo tempo velada amplidão, algo nunca pudesse quebrar o que se coloca no caminho da nossa essência e bloquear o seu curso. Então nada é encontrado do que dobra nossa essência sobre si mesma e a confina em uma estreiteza, através da qual ela se torna rebelde a si mesma.

J: A amplidão  nos carrega para o que é sem objeto, e não obstante nos preserva de antemão de nos dissolver nisto. Ela entrega nossa essência ao aberto e ao mesmo tempo reúne-a ao simples, como se a duração da amplidão fosse a pura chegada na qual somos admitidos [Einlaβ].

V: Tal amplidão brinda-nos com a liberdade. Ela nos liberta, enquanto aqui entre os muros deste quartel, atrás de arame farpado, incessantemente corremos contra o objetivo e nos chocamos com o que nos fere.

J: No início desta manhã, eu de fato também pensei que essa experiência do que cura veio apenas como um sentimento de contraste à doentia estreiteza do nosso campo, como se não fosse nada além da aparência transitória de uma benção, que por um curto tempo é conferida a tais enganos. Todavia desde cedo nesta manhã, esta amplidão tem habitado a minha volta aliviando, apontando, congregando assim tanto que eu não mais consigo pretender que é apenas um mero engano.

V: A amplidão curadora não é algo da floresta, mas ao contrario, a amplidão da floresta  é admitida [eingelassen] no que cura.

J: Mas também a floresta não se torna um mero símbolo da amplidão curadora; é provavelmente algo outro que o mero ocasionamento do seu aparecimento, embora o enigma do ocasionar já baste para dar o que pensar, e assim nos preservar de esclarecer tais experiências de modo demasiadamente apressado a partir da sua compreensão comum. Certamente, não posso dizer do que experimentei a não ser na visão do que a floresta ocasionou.

V: E, contudo, você presumivelmente será capaz de apontar algum sinal no qual o que cura se testemunhou a você. Mas não quero pressioná-lo, pois que sei o quão rigorosamente você enterra em seu silêncio todas as adversidades que nos tem acontecido nestes últimos meses. Todavia, para que compreendamos o que se tornou curador pra você, teremos que saber o que o feriu primeiro. E o que não está ferido e dilacerado em nós? Nós a quem um cego desencaminhar de nosso povo é tão deplorável que não permite um lamento, apesar da devastação que cobre nosso solo nativo e seus homens perplexos.

J: Mas você ainda está pensando na nossa decisão sobre a marcha para a prisão, a decisão de não falar mais sobre esta devastação por um longo tempo. Sempre que pode se tornar inevitável falar sobre isso, contudo, tal conversa deve tomar lugar somente de maneira recolhida, de acordo com os mais altos critérios, e sem falsa paixão. Afinal a devastação que estamos pensando não tem existido apenas desde ontem. E não se esgota pelo que é visível e tangível. E não pode também nunca ser contabilizada por nenhuma enumeração de instâncias de destruição e eliminação de vidas humanas, como se a devastação fosse apenas um resultado disto.

V: Porque a essência da devastação é mais profunda e vem de mais distante, nossa reflexão retorna a ela reiteradamente. E ao fazê-lo, nós talvez reconheceremos mais claramente que a devastação da Terra e a aniquilação da essência humana que acompanha àquela, são de alguma forma o mal [das Böse] ele mesmo.

J: Por “mal” claro, não queremos dizer sobre o que é moralmente mau, ou o que é repreensível, mas sim, o maligno.

V:  Mas então, se pensarmos claramente, deveremos dizer que o mal é o maligno? Ou, como o nome diz: o maligno [das Bösartige] é da forma [Art] do mal [Bösen] e é escoado deste aqui mesmo.

J:  Mas desde que não signifiquemos o nome “maligno” enquanto algo moralmente repreensível, então a sentença, o mal é o maligno deve ter um sentido, assumindo-se que pensemos o maligno de outra perspectiva que a da moralidade [dem Sittlichen].

V: De onde devemos pensá-lo, em caso contrário?

J: Precisamente no sentido daquilo a que a palavra “maligno” [“bösartig”] se nos refere. A malignidade é o turbulento [Aufrührerische], que repousa no furor [Grimmigen], de tal modo que este furor, em certo sentido, oculta sua ira [Ingrimm], mas ao mesmo tempo sempre ameaça com isto. A essência do mal é a ira da turbulência [Aufruhrs] que nunca irrompe inteiramente, e que quando irrompe, ainda se dissimula a si mesmo, e em sua ameaça oculta é sempre como se não fosse.

V:  Então dizer que o mal seja o maligno pode ter um sentido profundo.

J: O furor que essencialmente repousa no mal solta a turbulância e o tumulto que pressentimos sempre de todos os lados, onde encontramos uma dissolução que parece ser imparável.

V:  Se, contudo, o mal repousa no maligno – que é em si mesmo enfurecido por seu próprio furor, e através dele sempre mais furioso – então eu quase poderia pensar que o maligno é algo pertencente à vontade.

J: Talvez no todo, a vontade ela mesma seja o que é o mal.

V: Eu recuso de até mesmo supor algo tão audacioso.

J: Mas eu disse apenas “talvez”, e o que eu disse tambem não é meu pensamento, mesmo que ele não tenha me soltado desde que o escutei. Em tal ocasião, esse pensamento foi expresso apenas enquanto uma suposição.

V: A referência ao mal me ajudou ver um pouco mais claro o que dissemos sobre a devastação, sobre tudo no que diz respeito ao como nós podemos encontrar a devastação – digo, como nós de modo algum somos capazes de encontrar.

J: O que voce está pensando, não está claro pra mim.

V: A devastação que temos em mente, e que certamente precisamos começar a pensá-la mais rigorosamente, não é mal no sentido de uma maldade moral de seu autor alegado. Mas, o mal ele mesmo, enquanto o malígno, é devastador. Por isso uma indignação moral, mesmo que faça do público geral seu porta-voz, não é capaz de fazer nada contra a devastação.

J: E porque não?

V: Porque a superioridade moral não está em condições de compreender, muito menos de abolir ou até abrandar o mal.

J: Pois poderia ser o caso que até a moral [die Moral], por si mesma, junto com todas as peculiares tentativas de visionar uma ordem mundial e tornar certa a segurança mundial para os povos através dela, fossem apenas monstruosas descendências do mal; assim como o sempre muito apelado público mundial, em sua essência e em sua maneira de emergir, presumivelmente permanece um produto do processo ao qual estamos chamando de devastação.

V: Na verdade eu não vejo totalmente estas interconexões. Parece-me que algo similar concernente à origem da moral foi já dito por Nietzsche.

J:  E você também sabe da suspeita de sua metafísica que vive em nós. Nietzsche, claro, interpretou a moral – e isso quer dizer, a ética doutrinária platonico-aristotélica [Sittenlehre] juntamente com suas formas secularizadas tardias, por exemplo, a ética racional do Iluminismo e do socialismo – enquanto aparência da vontade de poder. Ele situou seu proprio pensamento em um “além do bem e do mal”. Mas Nietzsche não reconheceu que este “além” [“Jenseits”] – enquanto o reino da pura vontade de poder, isto é, de uma vontade para o poder que veio a si mesma – teria que permanecer só o mundo contrário do mundo pensado platonicamente. Mas essa doutrina de “disciplina e reprodução” é apenas a afirmação extrema da moral. Presumindo, contudo, que a vontade ela mesma é o que é mal, então o reino da pura vontade de poder é menos ainda um “além do bem e do mal” – se é que pode se dar algo assim como um “além do mal”.

V: Vejo que foi sem cuidado que mencionei o nome de Nietzsche. Nós temos certamente negligenciado  o fato que um pensamento sobre a filosofia de Nietzsche deveria ser apenas expresso com o mais alto grau de rigor e a partir de uma visão riquíssima na totalidade do pensamento ocidental. Contra sua filosofia, a indignação moral e a arrogância são capazes de tão pouco quanto são para o processo da devastação.

J: E esta devastação, afinal, concerne a nossa própria essência e seu mundo, de tal maneira que apenas estamos começando a pressentir.

V: Contudo, eu também sinto que é necessário que eu repita o que diz respeito a esta devastação reiteradamente, mesmo que uma vontade contrária de uma aversão [Widerwille] possa parar-me de fazê-lo, me pressionando a procurar uma opinião superior, numa atitude que não mais atenta para a devastação.

J: Mas enquanto nos deixarmos ser levados por uma vontade de aversão, estaremos valorando moralmente a devastação.

V: E não estaremos verdadeiramente livres no meio de sua essência.

J: Que somos primeiramente capazes de fazer quando somos verdadeiramente capazes de pensá-la.

V: Então você quer dizer, que devemos primeiro ser agraciados com o privilégio deste pensamento.

J: Talvez nós dois estejamos aqui neste campo, envolvidos em tal diálogo, para que possamos receber este privilégio.  Nós concordamos ja desde cedo sobre o pensamento de que a devastação seja provavelmente um acontecimento [Ereignis] de muito mais longo alcance, pelo que, finalmente, todas as possibilidades de que algo essencial se erga e floresça em seu domínio são sufocadas na raíz.

V: E aquilo que sufoca, esconde a si mesmo atrás de algo traiçoeiro, algo que se anuncia na forma de supostos melhores ideiais para a humanidade: o progresso, a escalada desenfreada da realização em todas as áreas da criação, oportunidades de empregos iguais para todos e, sobretudo, o maior determinante alegado – a padronização do bem-estar de todos os trabalhadores.

J:  O que é realmente devastador, e isto significa o que é mal. E aqui consiste o fato de que essas metas para a humanidade acabam levando os vários domínios da humanidade a se tornarem obsecados em devotar tudo a tal execução,  e assim levando incondicionalmente a devastação avante porquanto cada vez mais reforça a esta em suas próprias conseqüências.

V: Uma vez nós dizíamos – foi numa velha vila onde a tropa de prisioneiros estava descansando – que esta devastação não é de forma alguma uma conseqüência da II Guerra Mundial, mas ao contrário, a guerra é por sua vez apenas uma conseqüêcia da devastação que vem corroendo a Terra por séculos.

J:  Portanto, homens isolados ou bandos – que certamente devem instigar e sustentar as conseqüências deste fenômeno da devastação, mas nunca são a devastação ela mesma – podem sempre ser apenas de uma classe inferior.  Eles são os furiosos funcionários  de sua própria mediocridade, que está em classe muito inferior ao pequeno e miserável que ficam verdadeiramente dentro de seus limites.

V: “Devastação” [“Verwüstung”] significa pra nós, afinal, que tudo – o mundo, o homem e  Terra – converte-se em um deserto [Wüste].

J: Embora este deserto não surja primeiramente pouco a pouco enquanto um resultado da propagação da devastação. O deserto já está previamente aí, e quero dizer como num abrir e fechar de olhos [in einem Nu], para que assim possa puxar tudo para si, e isto significa ao mesmo tempo, para desertar [ver-wüsten].

V: E então o que é  o deserto? Com este nome, nós associamos à ideia de um lugar sem água, arenoso, plano num processo de sempre se tornar areia, mesmo que alguem tambem fale de “um deserto com água” como o oceano, o que significa que sua superficie imensurável é um plano sem vida.

J: O deserto é o ermo [die Öde]: a expansão abandonada [verlassene] pelo abandono [Verlassenheit] de toda vida. E este abandono se extende a tais abismos que o ermo não permite que nada que emerja [aufgeht] de e por si mesmo, em sua emergência, se desdobre a si mesmo, e neste desdobrar-se chame outros a um co-emergir. A desolação [Verödung] se estende para tão longe que nem mais permite nenhum perecer.

V: Nós então estamos transferindo a idéia georgráfica de um deserto, por exemplo, o Sahara, para o processo de desolação da Terra e do existir humano [menschlichen Daseins].

J: É o que parece. Mas me parece, contudo, que o conceito geográfico de deserto não é uma idéia suficientemente pensada da desolação, que se aproxima e vem à nossa visão somente em circunstâncias e condições particulares da superfície terrestre.

V: Nós pensamos, portanto, o deserto enquanto a amplidão abandonada [verlassene] pelo abandono [verlassenheit] de toda vida. O deserto é propriamente o devastador. Por isso a devastação consiste em que tudo – mundo, homem, e Terra – entre no abandono da vida.

J:  Aqui pensamos a palavra “vida” – como sempre tem sido desde tempos antigos no pensamento ocidental – de modo tão lato que a sua esfera de significação coincide com aquela da palavra Ser.

V: Mas agora, na medida em que a devastação consiste no abandono pelo Ser, então, pois, ela não mais permite nenhum ente, e isto assim ao ponto que finalmente tal falta possa lhe dizer respeito. Ou devemos chamar a uma era histórica em que uma forma de “vida” ainda assim domina, “a era da devastação’?

J: Se nós pudessémos ou até mesmo devêssemos isto, então, mundo, homem e Terra podem ser – e podem, contudo, tendo entrado na devastação – permanecer abandonados pelo Ser.

V: O Ser de uma era de devastação consistiria precisamente no abandono pelo Ser. Tal matéria é, contudo, difícil de pensar.

J:  Em todo caso, por agora é difícil para o homem contemporâneo, que raramente pensa no fato de que por trás da aparência de uma vida mais segura, mais elevada, um desleixo, se não certamente um impedimento, da vida poder se dar.

V: Se damos espaço a este pensamento, devemos, com efeito, pensar que o Ser de tudo o que é, mantem-se ambíguo no cerne.

J: Sem podermos, de imediato, experimentar onde se funda esta ambigüidade e se com esta caracterização do Ser é dito o mínimo dele mesmo. Presumivelmente estamos falando aqui apenas de um embaraço da compreensão humana [menchlichen Deutens] ao reportar-se ao Ser, mas não do Ser ele mesmo. É enigmático.


V:  E ainda mais misterioso do que a compreensão corrente supõe entender, a qual justamente avalia a História e as eras históricas apressadamente de acordo com apogeus e ocasos, e calcula todo o fenomeno histórico nos termos do que é desejável e não desejável.

J: Este tipo de calcular histórico poderia até ser uma conseqüência do fato de que o homem está devastado em sua essência, o que agora significa pra nós, abandonado pelo Ser.

V: E que ele, assim abandonado, contudo é, mas de tal maneira que todo o fazer e ter ele rola com o nada.

J: Com isso você está dizendo concisamente que o niilismo apenas pode ser algo historicamente positivo quando algo como um abandono do ente pelo Ser acontece, um abandono que, contudo, ainda deixa ser o ente.

V: Nietzsche na verdade avistou as aparências do niilismo; mas ele não conseguiu conceber a sua essência.

J: Porque ele, na verdade, finalmente ainda não podia pensar esta essência a partir de fundamentos essenciais.

V: Eis porque o seu próprio pensamento permanece preso ao niilismo.

J: E isto de modo tão definitivo, que a metafísica de Nietzsche apenas prepara a consumação do niilismo ao incondicional.

V: E daí mesmo ela concerne ao processo da devastação.

J: O maligno dessa devastação alcança o extremo quando se estabelece na aparência de um estado seguro do mundo, para que se possa garantir  ao homem um padrão satisfatório de vida enquanto a meta mais alta do existir [Daseins] e garantir sua realização.

V: O processo de devastação então não será repelido, menos ainda findado, com a criação de uma ordem moral mundial fundamentada.

J: Porque aqui  as “medidas” [“MaBnahmen”] humanas – ainda que seja gigante a sua extensão [AusmaB] – não são capazes de nada. Pois o maligno, enquanto o qual a devastação se dá, pode muito bem permanecer o traço básico do Ser ele mesmo.

V:  Se, com efeito, a devastação repousa no abandono do ente pelo Ser, e se esse abandono vem do Ser ele mesmo. Mas você tambem não acha que este pensamento – que o Ser seja [também] no fundo de sua essência maligno – é uma exigência horrível ao pensar humano?

J: Certamente, e especialmente quando o pensar deveria tambem abster-se do pensamento de que o mal mora na essencia do Ser, enquanto “pessimista”ou valorá-lo de alguma forma.

V: Tudo isso, é claro, não é fácil.

J: Que isto, a saber, o pensar o que é essencial, seja supostamente fácil é também uma exigência que vem somente do espírito da devastação.

V: Porque a devastação, na medida em que provém do Ser, é um acontecimento mundial que sitia a Terra, e os homens talvez nunca presumam ou ajuízem sobre isso. Pois não é só o limite do opinar diário entre os homens e grupos que é sempre restrito, mas também o é o homem que ajuíza muito rapidamente e facilmente cai sempre numa discussão barulhenta que o corroe; e este homem se torna um escravo de sua própria fúria, a ponto que não mais pode ver para além da fachada que apressadamente ele construiu à sua volta.

J: E desde que suficiente desgraça foi nos dada a suportar, nós mesmos gostaríamos de manter o coração e o espírito livres da aura perturbadora exalada pelo pensamento mau humorado. Quanto mais essencial é um discernimento, maior também deve ser o tato com o qual ele acorda os companheiros para o saber que cresce dele.

V:  Eu não entendo completamente porque você agora salienta precisamente isto.

J: Porque um dia, de um discernimento mais claro da essência da devastação, nós reconheceremos que a devastação reina também certamente e precisamente lá, onde países e povos não foram atingidos pela destruição da guerra.

V: Onde, portanto, o mundo resplandece no brilho do avanço, das vantagens, da fortuna, onde os direitos humanos são respeitados, onde a ordem civil é mantida e, sobretudo, onde todo o abastecimento e fornecimento para saciar o contínuo contentamento é assegurado,  de modo que tudo permanece visto de fora e arranjado e contabilizado para que seja útil.

J: Onde, sobretudo, o desnecessário nunca impede a rotina diária e traz as temidas horas vazias, nas quais o homem se torna entediado.

V: Como é, contudo, que lá, o que dissemos sobre a devastação da Terra é o que supostamente domina – e certamente até o mais alto grau – isso é que é difícil de experenciar, e mais ainda de pensar. Mas o que será mais dificil é mostar, sem arrogância, a devastação para aqueles que são afetados e, sem o menor traço de paternalismo, dar a eles conselhos para a longa recordação que é exigida, para que se possa tornar familiarizado com a devastação enquanto um acontecimento que permanece fora de toda culpa e expiação humanas.

J: Portanto nós tambem nunca – meramente no sentido de apenas ouvir a notícia de que a devastação é só uma questão do destino [Schicksal] – devemos cair vítimas da óbvia tentação de passar por cima dela; especialmente na medida em que nós estamos nos guardando, sobretudo, contra a tentação de passar por cima de algo.

V: Nós preferiríamos aprender a simplesmente esperar até que nossa própria essência se torne nobre e livre o bastante para consentir com decoro  [schicklich] ao mistério deste Desitino [Geschickes].

J:  Simplesmente esperar, como se esse consentir consistisse na espera; e esperar por tanto tempo,  como se esse esperar tivesse que durar mais que a morte.

V: A morte ela mesma é algo que nos espera.

J: Como se ela esperasse por nosso esperar.

V: E pelo que esperamos?

J: Deveríamos perguntar antes se esperamos propriamente?

V: Na medida em que esperamos por algo [auf etwas warten], atribuímo-nos a um esperado. Nosso esperar [Warten] é então apenas uma expectativa [Erwarten]. O puro esperar é perturbado – porque no puro esperar, ao que me parece, nós esperamos por nada.

J: Se nós esperamos propriamente pelo Nada, então nós já caímos de novo na expectativa, que neste caso se apega ao fato de nada ser nunca expectado. Equanto esperamos por nada de um tal modo, não esperamos puramente.

V: O quão estranho é isso, o esperar que deve ser nem por nada nem por algo, e contudo, esperar.

J: Na verdade, esperar o que corresponde à pura espera. Dito mais adequadamente: esperar ao que responde à  pura espera.

V: Você fala de um esperar, e pensa na espera como que um resguardar e manter, de modo que a questão permanece – o que entao significa “esperar”, se ele não pode ser equiparado com o resguardar?

J: Desde hoje de manhã cedo eu agora sou capaz de dizê-lo: esperar é o deixar-vir.

V: Deixar o que vir?

J: No puro esperar, o que mais deixamos vir do que o vir?

V: Então não algo que vem – mesmo se na espera, nós também, mas secundariamente, pensamos no vir do que vem.

J: Não; aquilo que nós pensamos, em deixar vir, é o vir. Pensar no vir [An das Kommen denken] – este é um enigmático recordar [Andenken].

V: Se o deixar-vir caracteriza a espera, então esta é direcionada para o futuro, e assim reverte o recordar, estabelecido que supomos por recordar primeiro o reportar-se ao passado [Vergangenes].

J:  Mas talvez esta opinião seja arbitrária. Talvez devamos também primeiro considerar se a pura espera é direcionada para o futuro. Presumivelmente isto é válido para o expectar. O enigmatico da espera enquanto um recordar repousa naquilo em que ela não permanece direcionanda nem pra algo futuro nem pra algo passado, e evidentemente nem também para algo já presente.

V: Nós quase gostaríamos de supor que a espera alcança – não sei se deveria dizer em ou fora – uma ainda cerrada dimensão do tempo.

J: E com isto, enquanto o deixar vir do vir, ela espera no sentido do resguardar.

V: Mas afinal, nós só podemos resguardar o que já foi confiado à nossa guarda e, portanto, é presente [Anwesend].

J: E, contudo, isto poderia ser confiado à nós e ao mesmo tempo ser ainda preservado.

V: Tudo que você diz agora sobre o esperar é tão simples e ao mesmo tempo tão misterioso, que eu tenho que lhe perguntar, como é que você pode saber isso com tanta clareza e apenas desde hoje de manhã?

J: Porque na experiência  do que vem, e de que ele é o que esperamos, e de que em tal espera unicamente nossa essência se torna livre; porque na simples experiência de tudo isso, o que cura se aproxima e nos é doado.

V: Você diz “nós”, quando, contudo, este curador foi doado só a você.

J: Mas neste mesmo dia, eu gostaria de compartilhá-lo agora com você, porque há muito eu sinto,  com clareza suficiente em nossas conversas, frequentemente interrompidas durante os intervalos da guerra, em nossas marchas, e agora aqui neste campo, que lhe dói a mesma ferida.

V: Sem que eu mesmo saiba agora o que está ferido de modo tão particular em você.

J: Uma vez que me foi concedido experimentar o que cura, nesta manhã, eu posso também nomear pra você a ferida que está começando a curar. Durante todos os anos de serviço militar na guerra, seguramente, num certo sentido prioritáro ao meu estudo na universidade, foi como se minha essência fosse emparedada e completamente expulsa da livre amplidão do pensamento. Ao mesmo tempo, contudo, me foi permitido pressentir e aprender a pressentir este pensamento como um país distante.

V: Quantos de nós, por anos, não teve que perder sua estada no mundo do pensamento? Quantos tem sido arrebatados para sempre  para fora deste mundo?

J: Penso menos numa renúncia da atividade intelectual, que na abstinência do existir [Dasein] que repousa no fundamento do pensamento. A dor ardente é que não nos foi permitido estar aí para o desnecessário.

V: Fomos barrados desde cedo.

J: Mesmo que nos falassem que poderíamos reclamar os direitos da juventude, no qual tudo terminava meramente com a inexperiência de adolescentes desafiando o conhecimento dos mais velhos.

V: E então da noite para o dia, estes adolescentes foram proclamados “homens”.

J: De tal modo que todos os conceitos e palavras deram uma virada, porque tudo já surgia do tumulto.

V: A devastação já estava em trabalho antes que a destruição começasse.

J: Certamente, caso contrário a destruição não poderia nem começar.

V:  E, contudo, existia entre muitos de nós um tipo genuíno de juventude. Como todo jovem genuíno, em qualquer tempo, eles podiam pensar para além daqueles que são mais velhos, se tivessem podido ser justamente jovens.

J: E isto significa, se a eles fosse permitido esperar puramente. Na verdade, costuma-se dizer que a juventude é impetuosa e incapaz de esperar. Parece-me, contudo, que tal impetuosidade juvenil para que o vem, surge somente de uma espera ainda desajeitada em seu primeiro florescer, a qual os mais velhos deveriam proteger de congelar-se, na medida em que eles deveriam purificar a espera da juventude, e trazê-la para o caminho, ao invés de cortá-la pela raíz e falsificá-la em meras expectativas [Erwartungen] e, assim, abusarem dela.

V:  A busca do mero expectar e a ganância de acumular reservas sempre se ligam ao que é supostamente necessário.

J:  Eles assim tornam cegos os olhos de nossa essência para o desnecessário.

V: E pelo fato de que o desnecessário permanece  em todos os tempos, o que é mais o
necessário de tudo.

J: Só aquele que aprendeu, a saber, a necessidade do desnecessário pode apreciar a dor que surge quando o homem é barrado de pensar.

V: Pensar, portanto, é o desnecessário, e ainda você atribui ao pensar  um alto grau de honra na essência do homem.

J: Até mesmo o mais alto grau. Você também sabe, é claro, que a sabedoria ocidental desde tempos antigos pensou o homem enquanto a essência pensante [das denkende Wesen].

V: Isso, o sei certamente. Mas eu não sei o fundamento [Grund] disso. E nunca pude compreender porque esta sabedoria apressadamente transpôs – através de um processo que, é claro, durou séculos – a essência do pensamento para ratio e para racionalidade [Vernünftigkeit].

J: É como se o Ocidente fosse incapaz de esperar até que o pensamento achasse o seu próprio caminho para sua essência original, que talvez consista na pura espera e na capacidade de esperar.

V: Talvez seja também precisamente porque a essência do pensamento é especialmente vunerável e suscetível à toda precipitação.

J: Pois só podemos experenciar a pura espera e preservar nossa essência nela, esperando. Querer dominar a pura espera apressadamente seria como colher água com uma peneira.

V: Nesta oportunidade favorável, quando você está tão claramente me avisando contra a pressa,  eu gostaria de contar-lhe algo que tem me perturbado por um bom tempo. Sempre que previamente falamos sobre a determinação ocidental da essencia [Wessenbestimmung] do homem – a cada vez você focou apenas em uma caracterização do homem enquanto o vivente que pensa. Na verdade, esta determinação já era comum no mundo Grego. Mas na maioria do mundo Grego, o pensamento humano foi de outra forma – a saber, enquanto ό θνητός, enquanto mortal, em distinção aos imortais, os Deuses. Esta caracterização do homem me parece ser imcomparávelmente mais profunda que a que você primeiro mencionou, que é adquirida por meio de um ver o homem através de um ver a si mesmo[1], isolado e separado das grandes proporções [Verhältnissen] nas quais ele é [steht] propriamente. E dentre destas proporções, aquela que ele tem aos deuses tem prioridade sobre todas as outras[2].

J: O que é isso que você gostaria de dizer com esta indicação?

V: Eu gostaria de admitir um receio, a saber, que você apressa-se pela determinação mais velha e profunda da essência do homem enquanto a de uma essência mortal, em favor de uma caracterização mais jovem e rasa do homem a qual concebe-o enquanto essência pensante. Eu acredito que compreendo também no que essa pressa é fundada.

J: E no que você acha que ela é fundada?

V: Nisto de que a filosofia e a apresentação [Darstellung] histórica de sua história têm em vista por rotina esta definição do homem enquanto a essência pensante. Embora tal determinação seja comum entre pensadores, eu devo admitir que não sei porque é comum. A antiga caracterização do homem enquanto mortal é, em contrapartida, mais própria [eigen] dos poetas, o que ainda se pode ver através da poesia de Hölderlin.

J: O que você diz toca algo por respeito ao qual eu certamente lhe devo uma resposta. Mas agora eu gostaria também de admitir para você um receio, a saber, de que teremos que sacrificar nosso descanso noturno e o diálogo começado nesta tarde, se devemos lograr um esclarecimento das duas determinações da essência do homem e de suas proporções ainda que de modo rudimentar.

V: Não foi minha intenção de repentinamente voltar nosso diálogo da tarde para as multicamadas [vielschichtige] e, portanto, também ambígua [vieldeutige] questão da essência do homem.  Só me pareceu ser uma boa oportunidade de apresentar para você algo que há muito está em meus pensamentos.

J: Talvez sua questão interina até pertença ao nosso diálogo. Por isto eu gostaria de responder-lhe em várias perspectivas. E até certo ponto eu provavelmente serei capaz de fazê-lo, porque eu tenho que refletir constantemente sobre isto quando penso.

V: Ficarei satisfeito se você me disser sua postura por relação à determinação mais antiga, e em sua opinião mais profunda, da essência do homem, que o pensa enquanto o θνητός, o mortal.

J: Sei disso muito bem; mas a determinação mais antiga pode apenas ser compreendida quando a mais nova for pensada. Eu gostaria de pôr em dúvida se esta permanece rasa em comparação com a mais antiga. Só a interpretação corriqueira da determinação da essência do homem enquanto o ζωον λόγον έχον [zoon lógon écon] me parece rasa. Mas se nós finalmente aprendermos a pensar que λόγος [lógos] originalmente significa reunião [Sammlung], então a determinação do homem por respeito ao λόγος diz que sua essência consiste no ser- em-reúnião, a saber, sobre o originário Um unificante.

V: Enquanto você diz isso, já está se tornando mais claro o reportar interno dessa determinação à antiga. Presumivelmente você de forma alguma se apressa para a antiga definição em favor da mais nova, mas apenas considerou mais cuidadosamente a nova para que possa então esperar mais puramente a verdade da outra.

J: Que seja, pois a mais antiga é, como todo princípio, mais difícil de pensar.

V: Se o homem enquanto o mortal é experimentado por distinção aos imortais, ele manifestamente é pensado por respeito aos Deuses e ao Divino.  E se o λόγος significa a reunião sobre o originário Um todo unificante, Um que, contudo, é o Divino ele mesmo, então as duas determinações essenciais – que inicialmente aparecem enquanto quase incompatíveis, ou ao menos enquanto estranha uma da outra – fundamentalmente pensam o Mesmo.

J: Seu esclarecimento da co-pertença das duas mais antigas determinações ocidentais da essência do homem é certamente esplêndida, mas me parece apressada a determinação alegada como a mais antiga, que o homem experimenta em sua mortalidade.

V: Como assim?

J: Na medida em que você toma essa determinação do homem, a saber, a que ele é um mortal, apenas como uma marca para o que essencialmente o difere dos imortais. Mas a determinação  ό θνητός, que costuma-se  traduzir por “mortal”, não concerne tanto à reportação do homem aos imortais, que é nomeada, mas à reportação à morte: ό θνητός aquele ente que pode morrer.

V: Mas o animal também pode morrer, e para tal, a caracterização enquanto θνητός  não seria de modo algum um traço distintivo da essência do homem.

J: Se o traço distintivo é um tal, então devemos ter em consideração que o animal não pode morrer. O animal não pode morrer, isto é, se morrer significa: marchar sobre a morte, ter a morte.

V: Só quem conhece a morte é capaz dela.
J: Ou quem pode ao menos saber [wissen] da morte. E só o pode quem, conforme sua essência, diferente da morte que espera sobre nós, pode esperar aquilo do que, como a morte, espera a toda nossa essência.


V: O homem é, enquanto aquele que pode morrer, a essência que espera.

J: Isso é o que penso.

V: Você pensou algo muito belo. Contudo, com esta interpretação da antiga definição da essência do homem, não vejo agora nenhum reportar a mais nova.

J: E se ainda, você considerar que no λόγος, enquanto a reunião sobre o originário Um todo unificante, reina algo assim como uma diligência [Achtsamkeit], e se você se perguntar se a diligência não é o mesmo que um esperar constante naquilo que nomeamos o puro vir, então talvez um dia você perceba que, também na alegada mais nova definição, a essência do homem enquanto aquele que espera é experimentada. Certamente, essa essência do homem enquanto espera permanece aqui, como lá, no não-dito. E eu não gostaria de afirmar que o que acabou de ser dito foi já propriamente [eigens] pensado pelos antigos – e também  eu não gostaria de decidir qual das duas definições, pensadas em suas verdades, é a mais antiga. Parece-me que as duas são igualmente antigas, porque igualmente originárias, em sua essência igualmente oculta. Mas tome o que foi dito apenas como uma suposição.

V: Você...

J: O que?

V: Estou feliz que confessei a você meus pensamentos sobre a suposta prioridade da supostamente mais nova definição da essência do homem.

J: E estou grato por ter sido capaz de explanar algo a esse respeito. Ontem eu ainda não seria capaz disso.

V: Porque hoje de manhã cedo, aquilo que cura foi primeiramente doado a você, aquilo que começa a lhe curar – que agora experimento também comigo, por nos deixar-ser aqueles que esperam.

J: Aqueles para os quais todo distante é próximo na proximidade do resguardo e todo próximo é distante na distância da boa-querência.

V: E então para aqueles que esperam, o próximo e o distante são o Mesmo, embora precisamente para estes a diferença do próximo e do distante se mantenha aberta mais puramente.

J: Por isso, aqueles que esperam vão também se guardar contra o imediatismo inquiridor que pergunta o que é isso que cura em si mesmo. Por todo esse dia, eu ainda senti urgir essa pergunta. E agora vejo que tal pergunta permanece imprópria àquilo a que esperamos.

V: Me parece que aqueles que primeiramente esperam aprendem primeiro a correta modéstia.

J: De modo que eles possam ser professores da grande pobreza.

V: Aqueles que sabem o que cura sem pesquisá-lo.

J: O que mais poderia isto que cura ser, exceto aquilo que deixa nossa essência [Wesen] esperar. No esperar, a essência do homem [Menschenwesen] é reunida na diligência sobre isto ao qual ela pertence e sem ser levada a se dissolver nisto.

V: Mas, contudo, na espera, enquanto aqueles que esperam, ouvimos de fora no indeterminado e abandonamos aí, por assim dizer, a nós mesmos. E agora você quer dizer que, na espera e enquanto aqueles que esperam, estamos antes no caminho que nos guia à nossa própria essência.

J: A espera é uma vereda que leva o nosso curso, uma vereda sobre a qual nos tornamos estes que nós somos, sem já os ser: os que esperam.

V: E então, se um homem fosse capaz disso, a pura espera seria como um eco do puro vir.

J: Este vir ocorre essencialmente em todo nosso redor e a todo o momento, mesmo quando não o consideramos. A espera é a capacidade que ultrapassa [übersteigt] toda nossa atividade [Tatkraft]. Quem se encontra no poder de esperar excede [übertrifft]  todo o realizar e os seus êxitos, embora a espera nunca conte com um tomar a dianteira [Überholen].

V: Isto justamente não pode ser pensado enquanto algo assim como uma competição. Enquanto aqueles que esperam, somos a admissão [Einlaβ] para o que vem. Somos de tal modo que, admitindo o vir, vimos primeiro a nós mesmos, enquanto aqueles que são o que são na medida em que se abandonam, mas isto devido ao fato que contra-esperam o vir.

J: Na espera nós somos pura presença [Gegenwart].

V: E nada mais. Somos isto tão puramente que mais de nenhum lugar algo nos interdita, algo o qual poderíamos agarrar e do qual ainda desejássemos nos poupar.

J: Esperando somos de tal modo como se passássemos desapercebidos e anônimos; não [somos] para tudo que sempre é só expectativa [erwarten] disto ou daquilo e na expectativa deste ou daquele algo para si. Esperar tem uma essência outra que toda expectativa, que é fundamentalmente incapaz de esperar.

V: Esperando nós também já partimos, a saber, para nossa essência, que foi empregada pelo puro vir, enquanto a admissão que responde a ele.

J: Enquanto aqueles que são chamados desta forma, nós somos como um instrumento de cordas da mais antiga proveniência, nos quais o som do jogo primordial do Mundo ressoa.

V: Por conseguinte este instrumento está provavelmente também – pense na determinação da essência do homem a mais antiga – suspenso em segredo decoroso no oculto. De resto, não é assim quando você diz que nós estaríamos na essência da admissão que responde ao vir e, portanto, a resposta [Antwort] não é também, como a “presença” [“Gegenwart”], o mesmo que a “resposta” na palavra [Wort]?

J: Sim, contudo não apenas “também na palavra”, como você diz, mas justo e previamente já na palavra.

V:  Se agora a presença é referida ao tempo, mas referida à palavra a resposta, então o tempo e a palavra são irmanados intimamente, mais do que os homens até aqui puderam pressentir.

J: Na medida em que se tem um fundamento para fazer esta suposição, contudo, nós provavelmente precisaríamos aprender a pensar a essência do tempo de acordo com  que tem sido pensado enquanto a presença, e pensar a essência da palavra por respeito à resposta.

V: Talvez nós já estejamos aprendendo isto por sermos aqueles que esperam, isto é, por sermos aqueles que têm tempo para o longo tempo no qual uma vez a verdade se dá [das Wahre sich ereignet].

J: Aqueles para os quais a longa duração do que vem nunca se torna entediante.

V: E no que isto consiste?

 J: Presumivelmente isso tem a ver com o fato que nós – no esperar do vir – já também concedemos a admissão a cada coisa.

V: Para onde? Com certeza não para nosso interior, pois aí estaríamos nos colocando contra as coisas, enquanto aqueles que tem o domínio sobre a essência das coisas. De tal maneira, nós estaríamos tornando coisas em objetos para sujeitos, assumindo para nós mesmos o papel deste último.

J: Nós, contudo, precisamente não somos sujeitos e não mais sujeitos, quando nos tornamos àqueles que esperam. Ao contrário, no esperar, nós liberamos as coisas precisamente para onde nós, enquanto aqueles que esperam, nos deixamos ir, a saber, para o que pertencemos.

V: E ao que pertencem as coisas?

J: Àquilo no qual elas repousam [beruhen].

V: E no que elas repousam?

J: No retorno a elas mesmas.

V: Então quando o homem põe as coisas para si enquanto objetos, e apenas as deixa ser enquanto tais e subsistem neste sentido, ele não deixa as coisas serem em seu repousante repouso [Ruhe].

J: O homem persegue as coisas numa inquietação que é estrangeira a elas, tornando-as meros recursos para as suas necessidades e itens em seus cálculos, e apenas meras oportunidades para o avanço e manutenção de suas manipulações.

V: Por não deixar as coisas serem em seu repousante repouso, mas, ao contrário – enfeitiçado por seu próprio progresso – passando por cima e para longe delas, o homem se torna o precursor da devastação que, já por um longo tempo, tem se tornado a tumultuada confusão do mundo.

J: Se somos aqueles que esperam, então nós não temos, por assim dizer, coisas vindo para nós; desta maneira, nós imediatamente nos transformaríamos naqueles que tem expectativas, e sempre quereríamos algo das coisas. Somos aqueles que esperam quando deixamos as coisas retornarem a elas mesmas. De tal retorno a elas mesmas, elas trazem a própria presença [Gegenwart] delas mesmas diante [entgegen] de nós; então antecipadamente, quando esperamos no puro esperar, elas preenchem o vazio que para nós parece escancarar-se a nossa volta, e não apenas de vez em quando em uma expectativa do vir.

V: Nós deveríamos, para dizer com mais propriedade, que as coisas que são desta forma presentes não permitem o vazio adiante, e então também não há a possibilidade de preencher tal vazio.

J: O puro vir, no qual esperamos, também não é algo embaçado e indeterminado. Ele é único e simples, para o qual homens, contudo, adaptam-se somente devagar, pois somos raramente capazes de deixar algo Ser naquilo que ele repousa.

V: Mas na medida em que nos tornamos capazes disto, a saber, de deixar algo ser naquilo que – enquanto em sua própria essência – é deixado, então somos verdadeiramente livres. A liberdade repousa no ser capaz de deixar [Lassenkönnen], e não no dispor e no dominar.

J: E unicamente essa liberdade é a verdadeira superioridade, a qual não precisa ter algo subjugado a ela, no qual ela suportaria a si mesma para se manter por cima.

V: Talvez a essência da liberdade, contudo, seja ainda mais misteriosa do que pensamos.

J: Porquanto nós ainda pensemos nela a partir da dominação e do positivo.

V: E ainda, agora também estou aprendendo a perceber mais claramente como foi possível aquilo que liberta ser ocasionado a você pela permanência da amplidão da floresta, e como, naquilo que liberta, o que é curador poderia se aproximar.

J: Que cura na medida em que acalma, mas nunca remove a dor.

V: Contudo, como você mesmo disse, o que era doloroso era que você permanecia barrado de pensar. Mas me parece agora que o que foi doloroso consistia um tanto no fato de que você não era mais capaz de saber em que sentido você é alguém que pensa – e isto significa, depois de tudo que dissemos, aquele que espera. Você já era alguém que espera quando a ocorrência da devastação o angustiou. Se não fossemos já em essência aqueles que esperam, então como poderíamos em algum tempo nos tornar isso?

J: De acordo com um velho ditado, só nos tornamos o que somos.

V: E de acordo com um novo ditado, só somos o que procuramos.

J: E só procuramos aquilo do qual esperamos.

V: E esperamos naquilo ao qual pertencemos.

J: Mas pertencemos ao vir enquanto a presença [Gegenwart], que respondendo [antwortend], o admite [einläβt].

V: Enquanto tal presença, deixamo-nos [lassen wir uns] ao vir, porque nossa essência já é deixada a ele.

J: E então, deixando-nos, tornamos a nós mesmos pela primeira vez próprios.

V: Cada uma dessas frases, que chama à outra, diz o Mesmo.

J: E cada uma é inexprimível [unausdenklich] porque cada uma pensa com antecedência [vordenkt] ao vir.

V: O vir é presumivelmente aquilo frente ao qual, enfim, nada mais pode ser pensado: o impensável à frente [das Unvordenkliche].

J: Por isso, o que cura também não pode nunca ser representado [Darstellen] em declarações proposicionais.

V: Mas sim, suposto ao modo do diálogo, como aconteceu agora conosco.

J:  Ou talvez também como eu inicialmente tentei dizer para mim mesmo, quando, não intencionalmente, estas palavras se disseram para mim:

Só em espera
Tornamo-nos a nós mesmos próprios,
Concedemos a todas as coisas
O retorno ao repouso.

Como o terno
Som de violinos antigos mestres,
Que passou inaudível
Como instrumentos em baús ocultos.


V: E tenho constantemente ponderado se o seu pensamento não é de fato um poetar oculto.

J: Você quer dizer que eu poeto porque expresso agora o que estamos tentando dizer com a ajuda de versos e rimas.

V: Embora eu não o ache; sei bem que versos e rimas não atestam o que é poético, e que até poetas genuínos podem ser presas de seus versos e rimas. Jacob Buckhardt, cujas cartas várias vezes lemos juntos, uma vez escreveu uma frase que memorizei e tenho sempre refletido a respeito. Lê-se: “Na verdade há matérias [Sachen] de poetas muito renomados que são interiormente nulas e vazias, e que só caminham em muletas de rimas”.

J: E ainda agora falei sobre as rimas.

V: Mas suponho que o poetar de seu pensamento repousa naquilo que é uma espera, e fundamentalmente já o era assim, até antes disso se alçar hoje ao claro saber para você.

J: Talvez aqueles dentre um Povo [Volk] que poetam e que pensam não sejam nada mais que aqueles que esperam no modo mais nobre, na presença ao vir [Gegenwart zum Kommen], presença através da qual  a palavra se atém à resposta da essência do homem [Menschenwesens] e assim é trazida à linguagem.

V: E então o povo de poetas e pensadores seria num sentido singular, o povo que espera.

J: O povo que deve, só e talvez, esperar ainda um longo tempo pela chegada desta sua essência, de modo que ele se tornaria mais esperante do vir, no qual a devastação enquanto algo passado já é preterida.

V: Este povo que espera, especialmente durante o tempo que sua essência ainda lhe escapa, e justamente ainda inexperiente desta essência esperante, conforme isto, estaria em perigo como nenhum outro.

J: E, certamente, esse povo estaria em perigo não por ameaças de fora, mas na medida em que ele tiranizasse a si mesmo com sua própria ignorante impaciência, e então se impulsionasse a erros contínuos.

V: E tudo isso na opinião que, para seguir sua essência, teria que finalmente ganhar reconhecimento por parte de outros povos.

J: Enquanto, com efeito, esta precipitada pseudo-essência permanece perpetuamente uma desastrada imitação do estrangeiro.

V: Se este povo se tornar algum dia o povo que espera, então teria que permanecer indiferente se outros o ouvem ou não.

J: Este povo não poderia também nunca, porquanto soubesse de sua essência, prevalecer-se de sua essência esperante como de um chamado especial e distinto.

V: Ao encontrar sua pura essência, esse povo não teria mais nenhum tempo para comparar-se com outros, seja de forma subestimada ou superestimada.

J: O povo que espera teria até que ser totalmente inutilizável para outros, porque claro o que sempre apenas espera, e constantemente espera ademais ao vir, não rende nada de tangível que pudesse ser usado no progresso e na elevação da curva de realizações, e para a ativa marcha dos negócios.

V: E este povo inteiramente inutilizável, teria que se tornar o mais velho povo, de modo que ninguém o aflija e tome em uso o seu fazer solitário, o qual é um deixar, para utilizar e esgotar prematuramente.

J: Sua fama, se é que se pode ostentar finalmente semelhante coisa, teria que consistir naquilo em que poderia esbanjar sua essência unicamente no desnecessário. Pois o que é mais desnecessário do que o esperar que espera o vir? O que é mais necessário do que o agarrar sem vacilar ao que está dado, o não criado do subsistente, e o levar adiante do que tem sido até agora?

V: Portanto, aquele sentido concreto, o qual dizem que ele deixa o homem primeiramente se postar em seus dois pés diretamente no chão.

J: Aquele sentido que nos leva a nos assegurar de um lugar para nós na Terra, um lugar onde podemos ser firmes e nos criar próximos aos fatos, para que sejamos positivos e válidos. E ainda, contudo, este necessário [nötiges] não pode nunca ser sem o desnecessário.

V:  De tal modo que a necessidade do desnecessário [die Notwendigkeit des Unnötigen] permaneceria para ser pensada.

J: Não a pensamos na espera? A espera no [deixar] vir não é tal pensamento, e talvez até o próprio pensar? De acordo com meu inequívoco sentimento, a cura que se abateu sobre nós repousa não na ocorrência de haver nos libertado de uma necessidade interna, mas nisto que ela nos transplantou para o saber que nós, enquanto os que esperam, estamos agora começando a entrar [einzukehren] na ainda-retida essência do nosso povo vencido.

V: Você supõe que, só na medida em que nos tornarmos àqueles que esperam, nós nos tornamos alemães?

J: Não o suponho apenas, eu o sei desde hoje de manhã cedo. Porém, não nos tornaremos alemães enquanto planejarmos achar “o alemão” através da análise de nossa suposta “natureza”. Enredados em tais intenções nós apenas caçamos o que é nacional, o qual, afinal, como diz a palavra, insiste em ser naturalmente dado.

V: Porque você fala tão severamente contra o que é nacional?

J: Depois do que dissemos do acontecimento [Ereignis] da devastação, tem se tornado desnecessário ainda lutar contra o que é nacional.

V: Não compreendo muito bem isto.

J: A idéia [Idee] de Nação é aquela representação [vorstellung] em cujo campo de visão um povo se posta a si mesmo, enquanto fundamento dado de algum lugar, constituindo-se em sujeito, a quem tudo então aparece enquanto o objetivo [Objektive], isto é, à luz de sua subjetividade.

V:  A nacionalidade não é nada além da pura subjetividade de um povo que pretende contar com sua “natureza” enquanto o que é positivo [das Wirkliche], de onde supostamente parte todo positivar [Wirken] e sobre o qual deve retornar.

J: A subjetividade tem sua essência nisso que o homem, o indivíduo, os grupos, e as esferas da humanidade, se insurgem para fundar a si sobre si mesmo e afirmar a si mesmo sobre o fundamento e a medida do que é positivo. Com essa insurreição na subjetividade emerge a insurreição no trabalho enquanto aquela forma do desempenho pela qual a devastação da Terra está preparada e  finalmente estabelecida ao incondicional. A única lei da devastação é que o necessário seja o mais necessário e o unicamente necessário.

V: Com isto, o nacional então permanece, pois, oficial, onde as Nações se unificam sobre o internacional.

J: O nacional e o internacional são o Mesmo. O internacional se fosse genuinamente desdobrado, seria o que a cordilheira [Gebirge] é em relação às montanhas singulares [Bergen]. Mas pode a cordilheira levar as montanhas singulares para além delas mesmas?

V: A cordilheira mantém-se no cume se ela traz para o alto as montanhas singulares juntas em sua independência própria. Na verdade ela é, em sua forma, algo outro que a soma das montanhas, e, mesmo assim, ela é apenas o essencial das montanhas.

J: O nacional e o internacional são tão decididamente o Mesmo, que ambos, na medida em que se nomeiam pela subjetividade e insistem sobre o positivo, sabem muito pouco – e, sobretudo, só podem saber muito pouco – o negócio o qual eles movimentam constantemente.

V: O negócio da devastação, e isto significa, do trabalho em consideração às possibilidades aumentadas do trabalho. Desse modo não podemos nos tornar alemães, – o que significa nos tornarmos quem poeta e pensa, isto é, não podemos nos tornar aqueles que esperam – enquanto perseguirmos o “alemão” no sentido de algo nacional.

J: Todavia, se somos o alemão, nós também não nos perdemos num internacionalismo turvo.

V: Visto nos termos do Nacional e do Internacional, então, não podemos mais dizer o que propriamente somos.

J: É certamente desnecessário dizer isto, porque o que é essencial mora mais quieto no não dito. Por outro lado, podemos saber que, enquanto aqueles que esperam, temos o mais longo tempo histórico [Geschichtszeit] à nossa frente.

V: Sabe, parece como se eu agora também começasse a sentir aquilo que cura. O que você acabou de dizer, sugere que o existir histórico [geschichtliche Dasein] de um povo e sua duração não são fundados no fato de que homens sobrevivem à devastação de seu mero nascimento [Gerburtsart], e vivem, e talvez, como se diz, reconstroem para que mais uma vez demonstre de forma modificada a vigência do que tem sido até agora. Antes, a pura duração do Destino torna-se bem-fundada somente através da espera que espera no vir.

J: Portanto, não podemos fazer nada de menor que o humilde trabalho de serenamente nos deixar engajar na espera.

V: E saber apreender o necessário, no qual em toda parte o desnecessário deve permanecer ainda.

J: Porque nós ainda sabemos tão pouco da necessidade do desnecessário [die Notwendigkeit des Unnötigen], que parece como se o desnecessário fosse rechaçado em um abandono estéril.

V:  Você presumivelmente diz deliberadamente: “parece como se”. Pois na verdade, não é que o desnecessário esteja num estado de abandono, mas que somos nós – nós que não prestamos atenção ao desnecessário enquanto o necessário – os abandonados.

J: Você está certo, e ainda talvez também não. O desnecessário nos requer e a nossa essência assim como o som, que, mesmo que suma sem ser ouvido, requer o instrumento que o doa.

V: Então, nós devemos saber aprender a necessidade do desnecessário e, enquanto aprendizes, ensinar isso aos povos.

J:  E por muito tempo isto talvez seja o único teor de nosso ensino: o necessário e a necessidade do desnecessário. Agora posso também te dizer mais claramente o que se tornou dado a conhecer hoje para nós na cura. É o escuro e o difícil que um tal aprendizado e ensino possam ter apenas seu o elemento na espera.

V: O que supõe com isso?

J: O aprender é espera quando é a procura, e o ensino é espera quando permanece um aconselhar.

V: Todos nós muito ansiosamente apressamos a procura com o encontrar, e apressamos o aconselhar com um arrogante querer aviar.

J: Mas não temo a carga do ensino aprendiz. Sei que há da haver os aparentados que a suportarão juntos.

V: Em vários finais de tarde, ao vir pra este campo, nós ponderamos  no como aconselhar aqueles entre nós e dentre ou outros, que apenas sabem do necessário, sobre a necessidade do desnecessário – e ponderávamos sobre como fazer isto de tal modo que aqueles aconselhados não caiam no apressado tornar este ensinar numa crença e uma visão de mundo e exaltá-lo enquanto tal.

J: Não interessa qual conteúdo elas queiram ensinar, todas as “visões de mundo”, de acordo com sua essência, pertencem à era e ao domínio da devastação.

V: Esta é uma corajosa afirmação.

J:  O que digo deve parecer sim. O que tenho em mente poderia se tornar claro para nós por uma recordação sobre a essência do pensamento moderno.

V: Para isso nós presumivelmente teríamos que ser ainda mais experimentados no pensamento.

J: E isto significa agora desde este fim de tarde: nós temos que aprender a esperar.

V: E temos que tentar dizer para tais amigos o que foi é dado a eles para pensar, por um longo tempo sempre renovado. Porém nós mesmos devemos primeiramente experienciar e examinar constantemente o que é inesgotavelmente dado ao homem para pensar.

J: Só assim vem ao seu aprender e ensinar o que é constante. Todavia, acredito que hoje nós compartilhamos nossa alegria por muito tempo sobre o que é curador. Amanhã o puro e simples trabalho estará novamente à nossa frente.

V: Mas como uma boa noite, e talvez também enquanto um agradecimento, eu ainda gostaria de relatar a você agora uma curta conversa entre dois pensadores. Nos meus dias de estudante eu a copiei de uma apresentação historiográfica da filosofia chinesa, porque isso me atingiu e, contudo, eu não a compreendi naquele tempo. Nesta noite, pela primeira vez ela se tornou clara para mim, e, provavelmente, por causa disso essa conversa também me ocorreu. Os nomes dos dois pensadores agora me escapam.
O diálogo é assim:

Um diz: “você versa sobre o desnecessário”
O outro fala: “Primeiro alguém deve reconhecer o desnecessário antes que se possa lhe falar sobre o necessário. A Terra é ampla e grande e, contudo, o homem precisa para estar de pé apenas de espaço bastante para poder sentar seu pé sobre ele. Mas se imediatamente próximo ao seu pé houvesse uma abertura que fosse até o subterrâneo, então o espaço sobre o qual ele está de pé seria ainda útil a ele?”

Um fala: “Não seria mais nada útil a ele”.

O outro fala: “Disso a necessidade do desnecessário aparece claramente.”

J: Agradeço a você por este diálogo.

V: E eu a você por seu poema, no qual talvez afinal algo de coeso esteja oculto.

J: Deixemo-nos pensando o coeso [das Dichtende].

V. Uma boa noite para nós dois e  todos na tumba.

J: E à pátria, a bênção de sua determinação.





***







Schloβ Hausen in Donautal, 8 de Maio de 1945.


No dia em que o mundo celebrou sua vitória,
sem ainda reconhecer que já desde
séculos é derrotado por seu
próprio levante rebelde.





[1] Como? Enquanto um vivente entre outros presentes na ζωή (vida).
[2] Juntamente com θνητός  ̀α-θνητός, portanto também o presente [Anwesend]