Germania – (A “Terra Mater Nerthus”)

" Ela não é honrada entre todos os alemães, mas apenas entre uma comunidade de tribos Suábias, que acreditam que ela considera as coisas humanas, e que viajou para estar entre os povos. Numa ilha do Oceanus, há um bosque sagrado com uma oferenda sacrificial providenciada, uma carruagem adornada com um tecido. Somente ao sacerdote é permitido tocá-la. Ele reconhece a presença da Deusa na região sagrada e, arreiando o gado, ele acompanha a Deusa em suprema reverência. Feliz então são os dias, e festivos são os locais que a Deusa em toda parte honra por sua vinda e por ser uma hóspede. Nenhuma guerra é então conduzida. Não há armas apreendidas. O ferro também é afastado; a paz e a quietude agora precalecem, agora só encontra-se o amor – até que o mesmo sacerdote, quando a Deusa ficou já bastante junto aos mortais, retorna-a para o seu reino sagrado. A carruagem e os adornos e, se você acreditar nisso [si credere velis], a presença da Deusa ela mesma são imediatamente lavados em um lago oculto. Este serviço é realizado por escravos, os quais são engolidos por este mesmo lago. Disso deriva o terror oculto e a ignorância sagrada concernentes àquilo que é visto apenas por aqueles que são destinados à morte."


 Tacitus, historiador romano, capt. 40 de seu Germania – (A “Terra Mater Nerthus”)

Parmênides: um pensador primoroso da forma do Ser enquanto verdade – um pensador do Princípio

Talvez o texto filosófico mais obscuro legado à história do pensamento ocidental, ou quem sabe assim tornado pelo curso desta própria história, seja o “poema doutrinário” de Parmênides de Eléia. Quando procuramos trazer alguma clareza sobre o seu teor metafísico, ou seja, sobre a sua problemática filosófica, sentimo-nos inteiramente desamparados se recorremos à sua interpretação praticada ao longo da história. Desde Platão, com efeito, a apreensão originária do Ser conquistada por Parmênides é sempre abordada sob a lente de uma ontologia de orientação lógica – esse é o modo no qual o pensamento filosófico vem cursando a história.

Neste breve ensaio, propomo-nos apenas apontar a nossa compreensão do que seja o esclarecimento de Heidegger da questão metafísica concernente a esta obra de Parmênides, indicando duas questões fundamentais privilegiadas pelo filósofo contemporâneo e tomadas por ele enquanto pedra de toque do poema doutrinário. Ambas as questões estão imbricadas em caráter necessário. A primeira concerne ao esclarecimento da Deusa apresentada no poema. Esta personagem insigne, Heidegger a identifica enquanto a configuração excelente da verdade. A Deusa presente no poema doutrinário de Parmênides é finalmente a Deusa Αλήθεια. Esta é a partida desde a qual o filósofo Grego enceta a sua apresentação do sentido da verdade, sentido este norteador de todo o poema. A verdade é, precisamente, o motivo privilegiado do poema de Parmênides.

Ao identificar a Deusa com a verdade, Heidegger pretende trazer à luz uma determinação radical do conceito Grego de verdade, apontando o caráter peculiar da excelência deste conceito num determinado momento histórico, e pretende ainda dar a ver o modo como esta excelência se torna essencialmente distinta a partir do pensamento platônico-aristotélico até distanciar-se inteiramente do seu princípio Grego na Modernidade.

A segunda questão concerne ao esclarecimento que Heidegger concede do sentido Grego do fenômeno da verdade, fazendo consonar com a palavra com que o idioma Grego designa o fenômeno. Começamos pela segunda questão como meio de nos habilitarmos a dar o primeiro passo de volta rumo ao princípio (a primeira questão).

O ensaio Parmênides é uma apresentação pormenorizada do sentido Grego da verdade e do processo histórico de sua transformação no Ocidente. Ao abordar a compreensão Grega do sentido de verdade partindo de um esclarecimento da feição etimológica da palavra αλήθεια, Heidegger procura instaurar o próprio fundamento do fenômeno na linguagem. Αλήθεια é a ocorrência de descerramento produzida pela linguagem, ocorrência esta que tem lugar no seio de uma cerração originária. Nestes termos, ela é um fenômeno de clareira no interior da qual dá-se a descerração de uma cerração e sempre de novo a cerração de uma descerração. Ocorrendo no seio de uma cerração enquanto âmbito originário de sua possibilidade, a αλήθεια se revela enquanto uma ocorrência concernente a este próprio âmbito, ao qual Heidegger nomeia de ληθέ. Do ponto de vista puramente etimológico já vemos que a verdade é concebida de modo Grego nos termos de uma contra-dicção. Desta forma a αλήθεια deve ser apreendida enquanto a luta essencial da cerração com ela própria. E enquanto tal, ela não pode nunca ser configurada na forma de uma distinção pura e simples de algo outro que ela mesma. Isto significa dizer que em termos rigorosamente gregos a verdade não pode ser configurada na forma de uma mera distinção por respeito ao um falso suposto como seu outro. Αλήθεια é antes a diferença compreendida enquanto diferenciação do Um nele mesmo.

Atendo-nos ao contexto do Poema de Parmênides, compreendemos que esta configuração do Ser da verdade, que Heidegger apresenta-nos, favorece inteiramente ao esclarecimento do difícil argumento da necessidade do ensino do caminho de desvio da verdade, que a Deusa concede concomitantemente ao ensino do caminho próprio. Através da lente da filosofia de Heidegger podemos compreender que o outro caminho se dá enquanto efeito de luz produzido pela luta do descerramento com a cerração. Este outro caminho é o caminho dissimulador enquanto o qual a cerração se faz prevalecer sob tantos modos, nos diversos momentos da luta. Ele é a forma da resistência à clareira, não como sua negação, antes como afirmação do caráter agônico de sua essência – clareira é a doação que a luta característica da cerração originária faz ao existir humano enquanto linguagem.

Clareira, portanto, não é a mera conseqüência de um descerramento, é, com efeito, a abertura fundamental para todo descerramento possível, e desta forma ela é o descerramento ele mesmo, ainda que este não seja toda a clareira. Esta ocorrência da clareira (do aberto originário) no seio da cerração – ocorrência proveniente da luta da cerração com o outro de si mesma é o que Heidegger caracteriza enquanto o fenômeno próprio da liberdade. Esta aqui enquanto o aberto constituinte da clareira é o próprio espaço de jogo concedido pela e para a luta – a própria arena do Ser. É no interior desse espaço que pode se erigir um Mundo, ele próprio enquanto “âmbito continuamente mutante de decisão e produção, de ação e responsabilidade, mas também de arbitrariedade e burburinho, queda e desnorteamento”.

Se a clareira é concedida pela liberdade, se ela se abre enquanto mundo gerado nas entranhas da Deusa ’Eρις (luta) é certo que ela há de aclarar tanto quanto dissimular o caminho do próprio descerramento para os mortais. Daí surgir a possibilidade de um caminho desviante, cujo sentido a Deusa Αλήθεια precisa ensinar ao poeta-pensador enquanto aquilo que ele deve ensinar aos homens, senão em seu motivo essencial de desvio, ao menos na configuração do seu desdobramento fáctico na existência dos mortais.


Esboçado aqui o esclarecimento que Heidegger concede do sentido Grego do fenômeno da verdade, sem nos deter na apresentação do filósofo do processo histórico desfigurador da verdade e do seu oposto, e isto para atermo-nos ao nosso propósito de nos restringir ao âmbito estrito do Poema de Parmênides, podemos agora apontar em que sentido devemos compreender o intuito de Heidegger de apresentar-nos enquanto um fenômeno unitário a verdade e a Divindade. Heidegger compreende que Parmênides associa à Deusa ao próprio tema do seu discurso, porque entende que para o pensador primordial que foi Parmênides nenhuma verdade poderia ser proferida senão por meio da própria Divindade. Quem narra é a Deusa, e o poeta apenas repete o que ouve – não por acaso as Musas são em número de nove, narrando aos poetas cada qual a verdade do tema de que elas mesmas se constituem. Assim, quando a narração concerne à verdade ela mesma, cabe mostrar que aqui fala a própria Divindade sobre si mesma. Porque a verdade, em seu sentido complexo de liberdade, luta, de cerração e clareira constitui o próprio caráter divino do Ser – ela é, nestes termos, a Divindade ela própria. E só por isto a sua palavra fundamental, primordial, é Mito. É nesta perspectiva que podemos compreender que o pensador primordial da verdade é necessariamente um pensador do Princípio.

Nosso propósito aqui foi apenas o de apresentar num esboço, a compreensão de Heidegger do teor problemático do Poema doutrinário de Parmênides. Elegemos as duas questões acima abordadas porque acreditamos que elas se prestam perfeitamente como fio condutor para o estudo tanto de sua interpretação da obra de Parmênides quanto do pensamento Grego pré-socrático. Acreditamos que a partir da perspectiva aqui fixada, possamos posteriormente dar continuidade ao estudo desta obra irrefutável de Heidegger.

(por M.S.)



Referências:

Bornheim, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.

Heidegger, Martin. Parmenides. Translated by Andre Schuwer and Richard Rojcewicz Bloomington: Indiana University Press, 1998.

______________ . Elucidations of Hölderlin’s Poetry. Translation: Keith Hoeller. New
York: Humanity Books, 2000.