Este
texto, de autoria do brilhante filósofo alemão Martin Heidegger, foi escrito no
outono de 1948 e publicado numa obra de autoria coletiva celebrando o
centenário (1949) da morte do compositor Conradin Kreutzer, aliás parente
distante de Heidegger. A presente tradução, feita por Ernildo Stein e José
Geraldo Nogueira Moutinho, foi publicada no 4º número da revista "Cavalo
Azul", dirigida pela poetisa e tradutora Dora Marianna Ferreira da Silva,
viúva de Vicente Ferreira da Silva.
*
Do
portão do Jardim do Castelo estende-se até as planícies úmidas do Ehnried.
Sobre o muro, as velhas tílias do Jardim acompanham-no com o olhar, estenda
ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço entre as sementeiras que nascem e as
campinas que despertam, ou desapareça, pelo Natal, atrás da primeira colina,
sob turbilhões de neve. Próximo da cruz do campo, dobra em busca da floresta.
Sauda, de passagem, à sua orla, o alto carvalho que abriga um banco esquadrado
na madeira crua.
Nele
repousava, às vezes, este ou aquele texto dos grandes pensadores, que um jovem
desajeitado procurava decifrar. Quando os enigmas se acotovelavam e nenhuma
saída se anunciava, o caminho do campo oferecia boa ajuda: silenciosamente
acompanha nossos passos pela sinuosa vereda, através da amplidão da terra
agreste.
O
pensamento sempre de novo às voltas com os mesmos textos ou com seus próprios
problemas, retorna à vereda que o caminho estira através da campina. Sob os
pés, ele permanece tão próximo daquele que pensa quanto do camponês que de
madrugada caminha para a ceifa.
Mais
freqüente com o correr dos anos, o carvalho à beira do caminho leva a lembrança
aos jogos da infência e às primeiras escolhas. Quando, às vezes, no coração da
floresta tombava um carvalho sob os golpes do machado, meu pai logo partia,
atravessando a mataria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo de
madeira destinado à sua oficina. Era lá que trabalhava solícito e concentrado,
os intervalos de sua ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos, que,
uns e outros, mantêm relação própria com o tempo e a temporalidade.
Os meninos,
porém, recortavam seus navios na casca do carvalho. Equipados de banco para o
remador e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach ou no lago da escola.
Nesses folguedos, as grandes travessias atingiam facilmente seu termo e
facilmente recobravam o porto. A dimensão de seu sonho era protegida por um
halo apenas discernível, pairando sobre todas as coisas. O espaço aberto
era-lhe limitado pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se passava como se sua
discreta solicitude velasse sobre todos os seres. Essas travessias de brinquedo
nada podiam saber das expedições em cujo curso todas as margens ficam para
trás. Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já
perceptivelmente, da lentidão e da constância com que a árvore cresce. O carvalho
mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica;
que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes
na obscuridade da terra; que tudo que é verdadeiro e autêntico somente chega à
maturidade se o homem for simultaneamente as duas coisas: disponível ao apelo
do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz.
Isto o
carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu
destino. O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele; e dá a cada um
dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos campos, as mesmas encostas da
colina escoltam o caminho em cada estação, próximos dele com proximidade sempre
nova. Quer a cordilheira dos Alpes acima das florestas se esbata no crepúsculo
da tarde, quer de onde o caminho ondeia entre os outeiros a cotovia da manhã se
lance no céu de verão, que o vento leste sopre a tempestade do lado em que jaz
a aldeia natal da mãe, quer o lenhador carregue, ao cair da noite, seu feixe de
gravetos para a lareira, quer o carro da colheita se arraste em direção ao
celeiro oscilando pelos sulcos do caminho, quer apanhem as crianças as
primeiras primaveras na ourela do prado, quer passeie a neblina ao longo do dia
sua sombria massa sobre o vale, sempre e de todos os lados fala, em torno do
caminho do campo, o apelo do Mesmo.
O
Simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os homens
inesperadamente, mas carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O dom que
dispensa está escondido na inaparência do que é sempre o Mesmo. As coisas que
amadurescem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em sua
plenitude dão o mundo. Como diz o velho mestre Eckhart, junto a quem aprendemos
a ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que Deus é verdadeiramente
Deus.
Todavia,
o apelo do caminho do campo fala apenas enquanto homens nascidos no ar que os
cerca forem capazes de ouví-lo. São servos de sua origem, não escravos do
artifício. Em vão o homem através de planejamentos procura instaurar uma
ordenação no globo terrestre, se não for disponível ao apelo do caminho do
campo. O perigo ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua linguagem. Em
seu ouvido retumba o fragor das máquinas, que chega a tomar pela voz de Deus.
Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece
uniforme. A uniformidade entedia. Os entendiados só vêem monotonia a seu redor.
O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se.
O
número dos que ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram, diminui,
não há dúvida, rapidamente. Esses poucos, porém, serão, em toda a parte, os que
permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo, poderão sobreviver
um dia às forças gigantescas da energia atômica, que o cálculo e a sutileza do
homem engendraram para com ela entravar sua própria obra.
O
apelo do caminho do campo desperta um sentido que ama o espaço livre e que, em
momento oportuno, transfigura a própria aflição na serenidade derradeira. Esta
opõe-se à desordem do trabalho pelo trabalho: procurado apenas por si, o
trabalho promove aquilo que nadifica.
Do
caminho do campo ergue-se, no ar variável com as estações, uma serenidade que
sabe, e cuja face parece muitas vezes melancólica. Esta gaia ciência é uma
sagesa sutil [1]. Ninguém a obtém sem que já a possua. Os que a têm,
receberam-na do caminho do campo. Em sua senda cruzam-se a tormenta do inverno
e o dia da messe, a irrupção turbulenta da primavera e o ocaso tranqüilo do
outono; a alegria da juventude e a sabedoria da maturidade nela surpreendem-se
mutuamente. Tudo porém se insere placidamente numa única harmonia, cujo eco o
caminho do campo em seu silêncio leva de um para outro lado.
A
serenidade que sabe é uma porta abrindo para o eterno. Seus batentes giram nos
gonzos que um hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da existência.
Das
baixas planícies do Ehnried, o caminho retorna ao Jardim do Castelo. Galgando a
última colina, sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega às muralhas da
cidade. Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia sobre as coisas.
Atrás do Castelo alteia-se a torre da Igreja de São Martinho. Vagarosamente,
quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas, desfazendo-se no ar
noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de menino se aqueciam
rudemente, treme sob o martelo das horas, cuja silhueta jocosa e sombria
ninguém esquece.
Após a
última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até aqueles que
foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O Simples torna-se
ainda mais simples. O que é sempre o Mesmo desenraiza e liberta. O apelo do
caminho é agora bem claro. É a alma que fala? Fala o mundo? Ou fala Deus?
Tudo
fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a
força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar uma distante
Origem, onde a terra natal nos é devolvida.
[1]
Literalmente: "Este alegre saber é das
Kuinzige". Este termo
dialetal, próprio da Suábia do Sul (onde se encontra Messkirch, cidade natal de
Heidegger), corresponde etimologicamente a Keinnützig,
"bom para nada", "próprio para nada", cujo sentido passou
para o de "travesso", "malicioso", e finalmente hoje
designa um estado de serenidade livre e alegra, que gosta de se ocultar,
marcada por uma ironia afetuosa e por um toque de melancolia: melancolia
sorridente, sabedoria que apenas se comunica discretamente nas palavras. Estas
informações foram dadas pelo próprio autor a Adré Préau, tradutor francês deste
texto, que em seu trabalho opta pela forma "sagesse malicieuse" (vide
Martin Heidegger, "Questions III", Éditions Gallimard, 1966, Paris).
Ao propor em português a tradução "sageza gentil", quisemos
ressucitar um velho vocábulo corrente na língua do século XVI, cuja afinidade
com o francês "sagesse" comunica um pouco do indefinível conteúdo da
expressão dialetal preferida por Heidegger [NOTA DO TRADUTOR].