Discursar significa para já:
indicar o lugar. Significa então: prestar atenção ao lugar. Ambos, o indicar o
lugar e o prestar atenção ao lugar, são os passos que preparam um discurso.
Contudo, estamos já a arriscar muito quando, de seguida, nos limitamos aos
passos preparativos. O discurso termina, como é próprio de um caminho de
pensamento, numa questão. A questão pergunta sobre a localidade do lugar.
O discurso fala de Georg Trakl mas
apenas de forma a considerar o lugar do seu poema. Para a época que se
interessa historiográfica, biográfica, psicoanalítica e sociologicamente apenas
pela expressão despojada, tal procedimento é claramente tendencioso, senão
mesmo errado. O discurso considera o lugar [2].
Originariamente, o nome Ort
[lugar] significava a ponta da lança. Nela tudo se conjuga. O lugar congrega
para si, para o mais elevado e para o mais extremo. O que congrega, penetra e
essencia-se em tudo. O lugar, o que congrega, recolhe, guarda o recolhido, não
como uma cápsula que fecha, mas antes vislumbrando e alumiando o recolhido,
libertando-o apenas assim para a sua essência.
Agora há que discursar sobre
aquele lugar que reúne o dizer lírico de Georg Trakl num poema, o lugar do seu
poema.
Cada grande poeta poetiza apenas
a partir de um único poema. A grandeza mede-se no facto de o poeta ser confiado
de tal modo a esse único poema, que é capaz de nele preservar, puro, o seu
dizer poético.
O poema de um poeta mantém-se não
dito. Nenhuma das várias poesias, nem sequer o seu todo, diz tudo. Contudo,
cada poesia fala a partir do todo do poema uno, dizendo-o de cada uma das
vezes. Do lugar do poema brota [38] a onda, que move de cada vez o dizer como
dizer poético. Porém, a onda não parte do lugar do poema, antes o seu brotar
deixa refluir todo o movimento do dizer para a origem que se vela sempre mais.
O lugar do poema abriga como fonte da onda motriz a essência velada daquilo
que, para a representação metafísica-estética, pode surgir, para já, como
ritmo.
Uma vez que o poema único se
mantém no não-dito, apenas podemos discursar o seu lugar ao tentar indicar o
lugar a partir do falado em cada poesia. Todavia, para tal, toda e cada poesia
necessita, desde logo, de um esclarecimento. Ela confere ao claro que alumia
todo o dito poético, o seu primeiro brilho.
Vê-se facilmente que um
esclarecimento sensato implica desde já o discurso. As várias poesias brilham e
soam apenas a partir do lugar do poema. Em contrapartida, um discurso sobre o
poema precisa de ser antecedido, desde logo,
por um percurso de pré-esclarecimento de várias poesias.
É nesta reciprocidade entre
discurso e esclarecimento que perdura cada um dos diálogos de pensamento com o
poema de um poeta.
O verdadeiro diálogo com o poema de
um poeta é apenas o poético: o diálogo poético entre poetas. Também é possível
e, por vezes, mesmo necessário, um diálogo do pensar com o poetizar, e
precisamente porque a ambos é apropriado ter uma relação notável, se bem que
diferente, face à linguagem.
O diálogo do pensar com o
poetizar tem a finalidade de evocar a essência da linguagem para que os mortais
reaprendam a habitar a linguagem.[39]
O diálogo do pensar com o poetizar é longo. Ainda mal começou.
Perante o poema de Georg Trakl, esse diálogo necessita de um cuidado
particular. O diálogo pensante com o poetizar pode servir o poema apenas
mediatamente. Por isso, corre o risco de incomodar o dizer do poema em vez de o
deixar cantar, partindo do seu próprio silêncio.
O discurso do poema é um diálogo
pensante com o poetizar. Nem representa a visão do mundo do poeta nem examina a
sua oficina. Antes de tudo, um discurso do poema não poderá jamais substituir o
ouvir das poesias, nem sequer conduzi-lo. O discurso pensante pode, no máximo,
tornar o ouvir questionável ou, na melhor das hipóteses, torná-lo mais
meditativo.
Estando cientes destas
restrições, tentaremos para já apontar para o lugar do poema não falado. Para
isso, teremos que partir das poesias faladas. Mantém-se a questão: partir de
quais? Que toda a poesia de Trakl aponta firmemente, se bem que não de modo
uniforme, para o lugar único do poema, prova-o a harmonia sem par das suas
poesias, a qual advém da única nota tónica do seu poema.
Para tentarmos indicar o seu
lugar temos, contudo, que nos limitar a uma selecção de apenas algumas
estrofes, versos e frases. Inevitavelmente, cria-se a impressão de um
procedimento arbitrário. Todavia, essa selecção é guiada pela pretensão de
conduzir a nossa atenção quase como que através de um salto do olhar até ao
lugar do poema.
Uma das poesias diz:
É a alma um estranho sobre a
terra.
Com esta frase encontramo-nos, de
súbito, numa representação corrente. Ela apresenta-nos a terra como o terrestre
no sentido de passageiro. A alma, [40] pelo contrário, é considerada como o
não-passageiro, o sobre-terrestre. Desde Platão que a alma pertence ao
sobrenatural. Se ela aparece no sensível, é porque foi para aí arrastada. Aqui,
“na terra”, não há lugar para ela. A alma é aqui “um estranho”. O corpo é uma
prisão da alma, senão mesmo algo de pior. Assim parece que à alma não lhe resta
senão abandonar, o mais rapidamente possível, o domínio do sensível, que, do
ponto de vista de Platão, é o ente-não-verdadeiro, aquele que se decompõe.
No entanto, que estranho! A frase:
É a alma um estranho sobre a
terra.
provém de uma poesia com o título
“Primavera da alma” (149s.)[3]. Não se encontra aí
qualquer palavra sobre o domicílio sobre-terrestre da alma imortal. Isto
faz-nos pensar, e será bom prestar atenção à linguagem do poeta. A alma: “um
estranho”. Noutras poesias, Trakl parte, frequente e preferencialmente, da
mesma cunhagem de palavras: “um mortal” (55), “um escuro” (78, 170, 177, 195),
“um solitário” (78), “um vivido” (101), “um doente” (113, 171), “um humano”
(114), “um pálido” (138), “um morto” (171), “um silencioso” (196). Esta
cunhagem de palavras, a par da diversidade do seu respectivo conteúdo, nem
sempre possui o mesmo sentido. Um “solitário”, um “estranho” poderia significar
algo singular, que ora é “solitário” ora é “estranho”, dependendo de um ponto
de vista especial e limitado. [41] Esta espécie de “algo estranho” deixa-se
enquadrar e armazenar no género do estranho em si. Assim representada, a alma
seria apenas um caso, entre outros, do estranho.
Mas o que significa “estranho”?
Compreende-se habitualmente aquilo que é estranho como sendo algo de não
familiar, algo que não nos toca, mas que antes nos pesa e inquieta. Noe
entanto, originariamente, fremd [estranho] significa no velho alto-alemão fram:
em frente para outro lugar, a caminho de ..., ao encontro do que nos está
reservado. O estranho caminha à frente. Mas não deambula incerto sem
orientação, sem destino algum. O estranho dirige-se, procurando, ao lugar onde
pode ficar enquanto caminhante. Desde logo, o “estranho” segue, assim que lhe é
desvelado, o chamamento ao caminho para o seu próprio.
O poeta chama à alma, “um
estranho sobre a terra”. A terra é precisamente aquilo a que o seu caminhar
ainda não conseguiu chegar. A alma procura a terra, não lhe foge. Procurar a
terra, caminhando, de modo a poder construir e viver nela poeticamente, e só
assim podendo salvar a terra como terra, preenche a essência da alma. Sendo
assim, não é de modo algum verdade que a alma seja alma em primeiro lugar, e
para além disso, devido a quaisquer razões, que ela não pertença à terra.
A frase:
É a alma um estranho sobre a
terra.
refere muito mais a essência
daquilo a que se chama “alma”. A frase não contém nenhuma declaração sobre a
alma na sua essência já conhecida, como se se devesse afirmar, sob a forma de
um complemento, que à alma aconteceu aquilo que não lhe seria próprio, logo
algo de estranho, não encontrar na terra nem abrigo nem consolo. A alma como
alma é, pelo contrário, no fundo da sua essência, “um estranho sobre a terra”.
Ela mantém-se, assim, o a caminho, seguindo ao caminhar o impulso da sua
essência. Ora, deparamo-nos com a questão: Para onde é que o chamamento conduz
o passo daquilo que é “um estranho” no sentido referido? Uma estrofe da
terceira parte do poema “Sebastião em Sonho” (107) responde: [42]
Oh, que silencioso o andar pelo rio azul abaixo
Meditando sobre coisas
esquecidas, quando nos ramos verdes
O chamamento do melro levava um
estranho ao declínio.
A alma é chamada ao declínio. Ora
bem! Afinal a alma sempre deverá terminar a sua caminhada terrestre e abandonar
a terra. Disso não se fala nos versos referidos. Mas não é verdade que eles
falam do “declínio”? Concerteza. No entanto, o declínio aqui referido não é nem
uma catástrofe nem o mero desvanecer na decadência. Aquilo que anda pelo rio
azul abaixo
Declina em paz e silêncio.
“Outono Transfigurado” (34)
Em que paz? Na do morto. Mas que
morto? E em que silêncio?
É a alma um estranho sobre a
terra.
O verso a que a estrofe pertence
continua:
... Espiritualmente entardece
O azul sobre o bosque de troncos
abatidos...
Anteriormente é mencionado o sol.
O passo do estranho afasta-se rumo ao entardecer. “Entardecer” significa, para
já, o escuro. “Entardece o azul”. Escurece-se o azul do dia de sol? Desaparece
ele, à tarde, a favor da noite? “Entardecer” não é, contudo, um mero declínio
do dia como decadência da sua luminosidade em escuridão. Entardecer não
significa, de modo algum, necessariamente declínio. A manhã também alvorece. Com
a madrugada nasce o dia. O entardecer e o alvorecer constituem ambos um
nascer. O azul entardece sobre o bosque “de troncos abatidos”, sobre o bosque
inacessível e sucumbido. O azul da noite nasce à tarde. [43]
“Espiritualmente” entardece o
azul. O “espiritual” caracteriza o entardecer. Temos de considerar o que quer
dizer este espiritual, que é várias vezes referido. O entardecer é o declinar
do andamento do sol. Isto quer dizer: O entardecer é tanto o declinar do dia
como o declinar do ano. A última estrofe da poesia intitulada
“Declinar do
Verão” (169) canta:
O verde Verão tornou-se
tão silencioso, e soa o passo
do forasteiro através da noite de
prata.
Se um cervo azul se recordasse do
seu trilho
Do som ameno dos seus anos
espirituais!
Na poesia de Trakl surge sempre
de novo este “tão silencioso”. Parece-nos que este “silencioso” siginfica
apenas: mal perceptível para o nosso ouvido. Neste sentido, o denominado
refere-se à nossa representação. Mas “silencioso” significa: lentamente;
gelisian significa “deslizar”. O silencioso é o que escapa, deslizando. O Verão
desliza para o Outono, que é a tarde do ano.
... e soa o passo
do forasteiro através da noite de
prata.
Quem é este forasteiro? De quem
são os trilhos de que “um cervo azul” se poderia recordar? Recordar significa: “meditar
acerca de algo esquecido”,
... quando nos ramos verdes
o chamamento do melro levava um
estranho ao declínio. (107, cf. 34)
Em que sentido deverá um “cervo
azul” (cf. 99, 146) meditar sobre o que se declina? Receberá o cervo o seu azul
daquele “azul” que “entardece espiritualmente” e que é como a noite que cai?
Apesar de a noite ser escura, o escuro [44] não é necessariamente escuridão.
Numa outra poesia (139), chama-se a noite com as palavras
Oh, o suave ramo de
centáureas-azuis da noite
A noite é um ramo de centáureas,
um ramo suave. Correspondentemente, ao cervo azul também se chama “cervo
tímido” (104), “animal afável” (97). O ramo de azul congrega no fundo do seu
arranjo a profundeza do sagrado. O sagrado reluz a partir do azul,
encobrindo-se, porém, simultaneamente, através da escuridão que lhe é própria.
O sagrado retém enquanto se retira. Doa a sua chegada ao guardar-se na retirada
que retém. A claridade abrigada no escuro é o azul. Claro, ou seja, ressoante,
é originariamente o som que chama a partir do abrigo do silêncio, assim se
clareando. O azul ressoa na sua claridade ao soar. Na sua claridade ressoante
ilumina o escuro do azul.
Os passos do forasteiro soam
através dos sons prateados e dos brilhos prateados da noite. Uma outra poesia
canta (104):
E no azul sagrado soam passos
brilhantes
Noutra parte, diz-se sobre
o azul:
... o sagrado de flores azuis ...
comove aquele que olha.
Uma outra poesia diz (85):
... A face de um animal
petrificada de azul, da sua
sacralidade.
O azul não é nenhuma imagem do
sentido do sagrado. O próprio azul é o sagrado, devido à sua profundeza
congregadora que apenas brilha no seu encobrimento. Face ao azul, e
simultaneamente levado a conter-se devido a tanto azul, a face do animal
petrifica e transforma-se no rosto do cervo. [45]
A rigidez da face do animal não é
a rigidez do que morreu. Ao petrificar-se, a face do animal estremece. O seu
aspecto congrega-se para olhar, contendo-se, no “espelho da verdade” (85),
enfrentando o sagrado. Olhar quer dizer: entrar no silêncio.
É imponente o silêncio na pedra reza o verso seguinte. A pedra é
a montanha abrigante da dor. O conjunto rochoso congrega ao abrigar no rochoso aquilo que
apazigua, e a dor constitui aquilo que apazigua para o essencial. A dor
silencia “de azul”. O rosto do cervo, face ao azul, retira-se para o
apaziguado. Pois o apaziguado é, segundo o sentido literal da palavra, o que
congrega pacificamente. Ele transforma a discórdia, ao transformar em dor
apaziguada o que, na natureza do cervo, fere e queima.
Quem é o cervo azul a quem o poeta chama para recordar o
forasteiro? Um animal? Decerto. Apenas um animal? De modo algum. Pois ele deve
recordar. A sua face deve olhar à procura ... e olhar para o forasteiro. O cervo
azul é um animal, cuja animalidade provavelmente não reside no animalesco, mas
antes nessa recordação do olhar, para a qual o chama o poeta. Esta animalidade
está ainda longe e praticamente invisível. Assim, a animalidade do animal aqui
referido balança no indefinido. Ainda não foi trazida para a sua essência. Este
animal, nomeadamente o que pensa, o animal rationale, o homem, não foi ainda,
segundo uma expressão de Nietzsche, afirmado.
Esta expressão não significa, de
modo algum, que o homem ainda não tenha sido “constatado” como facto. Ele já o
foi de um modo mais que decisivo. A expressão significa: A animalidade deste
animal ainda não foi trazida para o firme, ou seja “para casa”, para a
familiaridade da sua essência encoberta. Desde Platão que a metafísica europeia
e ocidental luta por esta a-firmação. Talvez lute em vão. Talvez o caminho para
o “a caminho” lhe [46] esteja ainda obstruído. O animal que na sua essência
ainda não está a-firmado, é o homem hodierno.
Com o nome poético “cervo azul”,
Trakl chama aquele ser humano cujo rosto, ou seja, cujo olhar enfrentador, ao
pensar nos passos do forasteiro, é visto pelo azul da noite e, deste modo,
iluminado pelo sagrado. O nome “cervo azul” refere-se aos mortais que recordam
o forasteiro e com ele desejam alcançar, caminhando, a familiaridade do ser
humano.
Quem são eles que iniciam tal
caminhada? Provavelmente, são poucos e desconhecidos, se for o caso de o
essencial acontecer no silêncio, abrupta e raramente. O poeta enuncia tais
caminhantes na poesia “Uma Tarde de Inverno” (126), cuja segunda estrofe começa
assim:
Há quem, na caminhada
por trilhos escuros, chegue ao
portal.
O cervo azul abandona, onde e
quando se essencia, a que era até agora a forma essencial do homem. O homem que
era até agora decai, na medida em que perde a sua essência, ou seja,
de-compõe-se [verwest].
Trakl chama a uma das suas
poesias “Sete-cântico da morte”. Sete é o número sagrado. O cântico canta o
sagrado da morte. A morte não é aqui concebida como algo indefinido ou como, em
geral, o fim da vida terrestre. “A morte” significa, poeticamente, aquele
“declínio” para o qual “um estranho” é chamado. Daí que o tal chamado estranho
seja designado também (146) como “um morto”. A sua morte não é a decomposição,
mas sim o abandonar da figura decomposta do homem. Assim, a penúltima estrofe
da poesia “Sete-cântico da morte” reza:
Oh figura humana decomposta,
feita de metais gélidos
de noite e horror de bosques
afundados
e da chamuscante natureza do
animal;
Calmaria da alma.
[47]
A figura decomposta do homem
está à mercê do suplício do chamuscador e do ferimento do espinho. A sua
natureza selvagem não é alumiado pelo azul. A alma desta figura humana não está
na corrente do vento sagrado. Daí o curso dela estar parado. O próprio vento, o
vento de Deus, fica por isso solitário. Uma poesia que refere o cervo azul, mas
que contudo mal se pode libertar do “matagal de espinhos”, termina com os
versos (99)
Ressoa sempre
Em muros negros o vento solitário
de Deus
“Sempre” quer dizer: enquanto o
ano e o seu curso solar persistir ainda no sombrio do Inverno, e ninguém
recordar mais o trilho pelo qual o forasteiro com “passos ressoantes” perpassa
a noite. Esta noite é ela mesma, apenas, o encobrimento abrigador do curso
solar. Andar, ienai , significa no indo-germânico: ier-, o ano.
Se um cervo azul se recordasse do
seu trilho,
Do som ameno dos seus anos
espirituais!
O espiritual dos anos é
determinado pelo azul da noite, que entardece espiritualmente.
Oh, que solene o semblante
jacíntico do entardecer
A caminho
O entardecer espiritual é de tal
maneira essencial que o poeta intitulou uma das suas poesias, justamente, com a
expressão “Entardecer espiritual” (137). Também nela se encontra o cervo, mas
um cervo escuro. A sua natureza selvagem tem, ainda por cima, a tendência para
o lúgubre e a inclinação para o azul silencioso. Entretanto, o poeta navega ele
próprio “em nuvem negra” “pelo lago nocturno, pelo céu estrelado”.
[48] Reza o poema:
Entardecer espiritual
Da orla do bosque vem silencioso
um cervo azul;
na colina termina manso o vento
do fim da tarde.
Emudece o lamento do melro,
e as flautas suaves do Outono
calam-se no junco.
Em nuvem negra
navegas embriagado de papoila
pelo lago nocturno,
pelo céu estrelado.
Soa sempre a voz lunar da irmã
Através da noite espiritual.
O céu estrelado está representado
na imagem poética do lago nocturno. Assim julga a nossa representação vulgar.
Mas o céu nocturno é, na verdade da sua essência, este lago. Aquilo que nós
costumamos denominar a noite, não é senão algo imagético, ou seja, uma cópia
pálida e vazia da sua essência. No poema do poeta, o lago e o reflexo do lago
ressurgem frequentemente. As águas, ora negras ora azuis, mostram ao homem o
seu próprio semblante, o reflexo do seu olhar. Mas no lago nocturno do céu
estrelado aparece o alvorecer do azul da noite espiritual. O seu brilho é frio.
A luz fria provém do brilhar de
Selene (selanna). À volta do seu brilhar empalidecem e até arrefecem as
estrelas, como rezam versos do grego [49] arcaico. Tudo se torna “lunar”. O
forasteiro que através a noite chama-se “o lunar” (134). Esta “voz lunar” da
irmã que soa sempre pela noite espiritual, ouve-a o irmão quando este, no bote
que ainda é “negro” e se encontra mal alumiado pelo dourado do forasteiro, o
tenta seguir ao longo da sua viagem nocturna pelo lago.
Quando os mortais seguem a
caminhada do “estranho”, ou seja, o forasteiro, chamado para o declínio,
chegam-se eles mesmos ao estranho, tornam-se eles mesmos forasteiros e
solitários (64, 87 et al.).
É apenas através da viagem pelo
lago estrelado nocturno, isto é o céu sobre a terra, que a alma percorre e
experiencia a terra como terra na sua “seiva fria” (126). A alma desliza para o
azul crepuscular do ano espiritual. Ela torna-se “Alma de Outono”, e como tal
“alma azul”.
As poucas estrofes e os versos
aqui referidos apontam para o entardecer espiritual, conduzem ao trilho do
forasteiro, mostram o género e o curso daqueles que o seguem até ao declínio,
recordando-o. No tempo do “Declinar do Verão” o estranho, ao caminhar, torna-se
outonal e escuro.
Trakl chama “Alma de Outono” a
uma poesia cuja penúltima estrofe reza assim (124):
Em breve se escapam peixe e
cervo.
Alma azul, caminhar escuro
Separou-nos logo dos queridos,
dos outros.
O fim da tarde muda o sentido e a
imagem.
Os caminhantes que seguem o
forasteiro vêem-se de repente separados “dos entes queridos”, que para eles são
“outros”. Os outros - isto é o cunho da figura decomposta do homem.
A nossa linguagem chama ao ser
humano feito de um cunho só, e a este votado, o “género”. A palavra [50]
significa tanto o género humano no sentido da humanidade como também o género
no sentido da tribo, da parentela e das famílias, tudo isto por seu lado,
cunhado na dualidade dos sexos. O poeta chama ao género da “figura decomposta”
do homem o “género em decomposição” (186). Ele é deslocado do modo da sua
essência, e daí o género “aterrado”
(162).
Com o que é que este género se
encontra vencido, ou seja amaldiçoado? Maldição significa, em grego, plhgh, a
nossa palavra “golpe”. A maldição do género em decomposição consiste no facto
de este velho género ter sido apartado na discórdia dos géneros. Cada um destes
géneros aspira, a partir dessa discórdia, a chegar ao tumulto solto da mera e
sempre isolada natureza selvagem do cervo. Não é a duplicidade como tal, mas
sim a discórdia que cosntitui a maldição. Ela leva o género a partir do tumulto
da cega natureza selvagem à desunião, votando-o assim ao desterro desprendido.
Assim desunido e vencido, o “género decaído” já não consegue, por si só, reencontrar
o seu cunho certo. Apenas tem o cunho certo aquele género cuja duplicidade sai
da discórdia e caminha rumo à mansidão de uma dobra simples, ou seja, aquilo
que é um “estranho” e que segue o forasteiro.
Em relação a esse forasteiro,
todos os descendentes do género em decomposição permanecem como os outros.
Todavia, apegam-se-lhes o amor e a adoração. O caminhar escuro que segue o
forasteiro conduz, porém, para o azul da sua noite. A alma caminhante torna-se
“alma azul”.
Mas ao mesmo tempo ela separa-se.
Separa-se para onde? Para lá, por onde esse forasteiro deambula, aquele que por
vezes é chamado poeticamente apenas através da palavra indicadora “aquele”.
“Aquele” significa na linguagem arcaica “ener” e significa o “outro”. “Enert do
ribeiro” é o outro lado do ribeiro. “Aquele”, o forasteiro, é o outro em
relação aos outros, nomeadamente, em relação ao género em decomposição. [51]
Aquele é o que foi chamado para partir dos outros. O forasteiro é o que partiu,
o des-terrado.
Para onde é mandado um tal ser
que assume em si próprio a essência do estranho, isto é o caminhar-à-frente?
Para onde é chamado um estranho? Para o declínio. Este é o perder-se no
entardecer espiritual do azul e acontece a partir do declinar para o ano
espiritual. Quando tal declinar tiver de atravessar o destruidor do Inverno que
se aproxima, do Novembro, então aquele perder-se já nem sequer significa o
decair no infundado e na aniquilação. Perder-se significa, antes, no sentido
literal da palavra: soltar-se e deslizar lentamente para algures. Na verdade, o
que se perde, desaparece durante - e não, de modo algum, para - a destruição de
Novembro. Ele atravessa-a, deslizando, rumo ao entardecer espiritual do azul,
“à hora das vésperas”, isto é, por volta do fim da tarde.
À hora das vésperas o forasteiro
perde-se na negra destruição de Novembro
Sob ramos a apodrecer, ao longo
de muros cheios de lepra,
Por onde antes passou o irmão
sagrado
Mergulhado nos doces acordes da
sua loucura.
“Helian” (87)
O fim da tarde é o declinar dos
dias dos anos espirituais. O fim da tarde realiza uma mudança. O fim da tarde,
que se inclina para o espiritual, deixa ver algo de diferente, deixa meditar
sobre algo de diferente.
O fim da tarde muda de sentido e
de imagem. (124)
Aquilo que brilha, cujos aspectos
(imagens) são ditos pelos poetas, assume um outro aspecto devido a este fim da
tarde. Aquilo que se essencia, aquilo sobre cuja invisibilidade os poetas
meditam, muda de palavra devido a este fim de tarde. A partir de outra imagem e
de outro sentido, o fim da tarde transforma o dizer do poetizar e do pensar, e
o seu diálogo. No entanto, o fim da tarde só consegue realizar isto porque ele
próprio muda. [52] o dia declina devido a ele, mas no entanto, este declinar
não é um fim, é apenas inclinado para preparar aquele declínio através do qual
o forasteiro entra no início da sua caminhada. O fim da tarde muda a sua
própria imagem e o seu próprio sentido. Nesta mudança, esconde-se uma despedida
das horas do dia e das estações do ano que vigoraram até aqui.
Mas para onde é que o fim da
tarde conduz o caminhar escuro da alma azul? Para onde tudo se reuniu de modo
diferente e tudo está abrigado e guardado para um novo dealbar.
As estrofes e os versos até aqui
referidos remetem-nos para uma reunião, ou seja para um lugar. De que género é
este lugar? Como é que o devemos denominar? Decerto que a partir da adequação à
linguagem do poeta. Todo o dizer das poesias de Georg Trakl reúne-se à volta do
forasteiro caminhante. Ele é e chama-se “o desterrado” (177). À sua volta e
atravessando-o, o dizer poético está afinado para se tornar um único cântico.
Porque as várias poesias deste poeta estão reunidas na canção do desterrado,
denominamos o lugar do seu poema, o desterro.
O discurso tem que, através de um
segundo passo, tentar prestar uma maior atenção ao lugar que até agora foi
apenas indicado.
II
Será que o desterro, e
nomeadamente, o desterro enquanto lugar do poema, se deixa trazer, de um modo
particular, à vista meditativa? Isto apenas será possível se agora seguirmos,
com olhos mais atentos, o trilho do forasteiro, e perguntarmos: Quem é o
desterrado? Qual é a paisagem dos seus trilhos?
Os trilhos percorrem azul da
noite. A luz a partir da qual brilham os passos do desterrado é fria. A
expressão final de uma poesia que diz respeito, justamente, ao “desterrado”
[55] fala dos “trilhos enluarados dos desterrados” (178). Chamamos também aos
desterrados, os mortos. Mas para que morte morreu o forasteiro? Na poesia
“Salmo” (63), Trakl afirma:
O louco morreu.
A estrofe seguinte diz:
Enterra-se o forasteiro
No “Sete-cântico da morte” ao
forasteiro chama-se “o forasteiro branco”. A última estrofe da poesia “Salmo”
afirma:
No seu túmulo, o mago branco
brinca com as suas serpentes. (65)
O morto vive no seu túmulo. Vive
na sua câmara, tão silencioso e meditativo que até brinca com as suas
serpentes. Elas não são capazes de lhe fazer mal. Não estão estranguladas, mas
a sua maldade está mudada. Em contrapartida, na poesia “Os Malditos” (120)
diz-se:
Um ninho de cobras escarlate
Ergue-se lento do seu seio
revolto. (cf. 161, 164)
O morto é o louco.
Tratar-se-á aqui de um doente mental? Não. Loucura não significa a meditação
que tem na mente (wähnen) algo de absurdo. “Wahn” [loucura] deriva da palavra em alto-alemão wana, que
significa: sem. O louco medita, e medita como nenhum outro. Mas ao fazê-lo,
fá-lo sem o sentido dos outros. Tem uma sentido diferente. “Sinnan” significa
originariamente: viajar, tencionar ..., seguir uma direcção; a raiz
indogermânica sent e set significa caminho. O desterrado é o louco porque está
a caminho para ir a outro lugar. Daí que se possa dizer que a sua loucura é
“mansa”; pois ele medita sobre algo mais silencioso. Uma poesia que fala do
forasteiro apenas como “aquele”, como o outro, reza: [54]
Aquele porém descia os degraus de
pedra do monte dos monges
No semblante um sorriso azul, e
estranhamente mascarado
pela sua infância mais
silenciosa, e morreu;
O poema intitula-se “A um morto
precoce” (135). O desterrado morreu para a madrugada. Por isso é o “cadáver
delicado” (105, 146 et al.), amortalhado naquela infância que guarda mais
silenciosamente tudo aquilo, da natureza selvagem, que apenas arde e chamusca.
Assim, o que morreu para a madrugada, aparece como “a figura escura da
frescura”. É sobre ela que canta a
poesia com o título “À beira do monte dos monges” (113):
Segue sempre o caminhante a
figura escura da frescura
- -
Sobre a vereda óssea, a voz
jacíntica do rapaz,
dizendo baixinho a lenda
esquecida da floresta, ...
“A figura escura da frescura” não
segue o caminhante. Vai à sua frente, na medida em que a voz azul do rapaz traz
de volta o esquecido e o prediz.
Quem é este rapaz que morreu para
a madrugada? Quem é este rapaz cuja
... testa sangra silenciosamente
lendas arcaicas
e o augúrio escuro do voo dos
pássaros? (97)
Quem é este que se foi pela
vereda óssea? O poeta chama-o com as palavras:
Oh, há quanto tempo, Élis, tu
morreste.
Élis é o forasteiro chamado para
o declínio. Élis não é de modo algum a figura através da qual Trakl se refere a
si mesmo. Élis é tão essencialmente diferente do poeta como a figura de
Zaratustra o é também do pensador Nietzsche. Mas as duas figuras coincidem no
facto de a sua essência, tal como o seu caminhar, começar com o declínio. [55]
O declínio de Élis caminha para a madrugada arcaica, que é mais velha do que o
género envelhecido em decomposição, mais velha porque mais meditativa, mais
meditativa porque mais silenciosa, mais silenciosa porque ela própria mais
silenciadora.
Na figura do rapaz Élis, aquilo
que o caracteriza como rapaz não consiste numa oposição à feminilidade, mas
antes na aparência da infância silenciosa. Esta aparência guarda e poupa em si
a suave dualidade dos sexos, tanto do rapaz como da “figura dourada da rapaza”
(179).
Élis não é nenhum morto que se
decompõe no tardio do vivido. Élis é o morto que se essencia para o além, para
a madrugada. Este forasteiro desdobra o ser humano para diante, para o começo
daquilo que ainda não chegou a ser gerado (velho alto-alemão giberan). O poeta chama
àquilo que na essência dos mortais ainda não foi gerado, aquilo que está mais
jazente e que é por isso mais silenciador, o não-nascido.
O forasteiro que morreu para a
madrugada é o não-nascido. Os nomes “um não-nascido” e “um estranho” dizem o
mesmo. Na poesia “Primavera alegre” encontra-se o verso (26):
E o não-nascido cuida do próprio
descanso.
Este não-nascido guarda e
conserva a infância mais silenciosa para o despertar vindouro do género humano.
Assim jazendo, vive o que morreu precocemente. O desterrado não é o que morreu
no sentido de alguém que faleceu. Pelo contrário. O desterrado olha em frente,
para o azul da noite espiritual. As pálpebras brancas que protegem o seu olhar,
reluzem num enfeite de noiva (150), que promete a dualidade mais suave do sexo.
Calmamente, floresce a murta
sobre as brancas pálpebras do morto.
Este verso pertence à mesma
poesia que diz:
É a alma um estranho sobre a
terra.
As duas frases encontram-se numa
vizinhança directa. O “morto” é o desterrado, o forasteiro, o não-nascido [56]
Mas passa ainda
... do não-nascido
o trilho por aldeias sombrias,
Verões solitários.
“Canção das Horas” (101)
O seu caminho passa ao lado
daquilo que não o deixa entrar como hóspede, não mais o atravessando. Na
verdade, também a viagem do desterrado é solitária, mas esta solidão advém da
solidão “do lago nocturno, do céu estrelado”. O louco não navega por este lago
numa “nuvem negra”, mas antes num bote dourado. Mas o que é isto do dourado? O
poema “Recanto no bosque” (33) responde através do verso:
Também amiúde se mostra à mansa
loucura o dourado, o verdadeiro.
O trilho do desterrado passa
pelos “anos espirituais”, cujos dias são conduzidos, em toda a parte, para o
verdadeiro começo, passando a ser regidos, ou seja, rectos, a partir daí. O ano
da sua alma está reunido no que é recto.
Oh, que justos são, Élis, todos
os teus dias!
canta a poesia “Élis” (98). Este
chamamento é apenas o eco daquele outro, já ouvido:
Oh, há quanto tempo, Élis, tu
morreste.
A madrugada para onde morreu o
forasteiro, alberga o justo da essência do não-nascido. Esta madrugada é um
tempo com um carácter próprio, o tempo dos “anos espirituais”. Trakl intitulou
uma das suas poesiascom a simples palavra “Ano” (170). Começa assim: “Silêncio
escuro da infância.” Em comparação com esta, está a infância mais clara, porque
mais silenciosa e portanto diversa, que é a madrugada, para a qual o desterrado
declinou. O verso final da mesma poesia chama à infância mais silenciosa, o
começo:
Olho dourado do começo, paciência
escura do fim.
[57] O fim não é aqui nem a
consequência nem o desvanecer do começo. O fim, nomeadamente, como o fim do
género em decomposição, antecede o começo do género não-nascido. O começo
enquanto madrugada mais matinal, porém, ultrapassou já o fim.
Esta madrugada guarda a essência
originária e ainda velada do tempo. Esta permanecerá inacessível ao pensamento
vigente enquanto vigora a representação do tempo que, desde Aristóteles, é
normativa em todos os domínios. Segundo ela, o tempo, seja este representado
mecânica ou dinamicamente, ou a partir da desintegração atómica, é a dimensão
do cálculo quantitativo ou qualitativo da duração, a qual se processa em
cadeia.
Mas o verdadeiro tempo é a
chegada do que era. Este não é o passado, mas antes a reunião daquilo que se essencia,
a qual antecede toda a chegada, na medida em que esta reunião, enquanto tal, se
realberga naquilo que lhe é, respectivamente, anterior. A “paciência escura”
corresponde ao fim e à sua completação. Ela conduz algo de oculto ao encontro
da sua própria verdade. Suportar esta verdade conduz tudo ao declínio para o
azul da noite espiritual. Ao começo, porém, corresponde um olhar e um meditar
que brilha dourado, pois é iluminado pelo “dourado, verdadeiro”. Este
reflecte-se no lago estrelado da noite, quando Élis, durante a sua viagem, lhe
abre o coração (98):
Um bote dourado
baloiça, Élis, o teu coração no
céu solitário.
O bote do forasteiro baloiça, mas
a brincar, e sem o “receio” (200) que tem o bote dos descendentes da madrugada,
que seguem apenas o forasteiro. O bote dos descendentes da madrugada ainda não
alcança a altura do espelho do lago. Afunda-se. Mas onde? Na decadência? Não. E
para onde? Para o nada vazio? De modo algum.
Uma das últimas poesias,
“Lamento” (200), termina com os versos: [58]
Irmã de amotinada melancolia
Olha, um bote receoso afunda-se
Sob estrelas
Sob o semblante silencioso da
noite.
O que é que abriga este silêncio
da noite, que olha a partir do brilho das estrelas? Aonde pertence este
silêncio, juntamente com a própria noite? Ao desterro. Este não se esgota num
mero estado, no estar morto, em que vive o rapaz Élis.
Ao desterro pertence a madrugada
da infância mais silenciosa, pertence-lhe a noite azul, pertencem-lhe os
trilhos nocturnos do forasteiro, pertence-lhe o bater nocturno das asas da
alma, pertence-lhe, já, o entardecer como portal para o declínio.
O desterro reúne tudo aquilo que
mutuamente se pertence. Não o faz posteriormente, mas antes desdobrando-se na
sua reunião já em vigor.
O poeta chama “espirituais” ao
entardecer, à noite, aos anos do forasteiro e aos seus trilhos. O desterro é
“espiritual”. O que significa esta palavra? O seu significado e o seu uso são
velhos. “Espiritual” significa aquilo que é conforme ao sentido do espírito,
que provém dele e segue a sua essência. O uso da linguagem hoje corrente
limitou o “espiritual” à relação para com o “clero”, a classe dos clérigos e a
sua Igreja. Também Trakl parece referir-se a esta relação, ou, pelo menos,
assim parece ao ouvido superficial, quando, na poesia “Em Hellbrunn”, diz:
... Tão espiritualmente
enverdecem
os carvalhos sob os trilhos
esquecidos dos mortos,
Anteriormente, são referidas “as
sombras dos príncipes da Igreja, das nobres damas”, “as sombras dos há muito
falecidos”, que parecem pairar sobre o “Lago da Primavera”. Mas o poeta que
aqui canta “de novo o lamento azul do fim da tarde”, não pensa no “clero”,
quando os [59] carvalhos se lhe enverdecem “tão espiritualmente”. Pensa na
madrugada do que faleceu há muito, a qual promete a “Primavera da Alma”. O
mesmo é também cantado na poesia cronologicamente anterior, “Canção espiritual”
(20), se bem que de uma forma mais encoberta e tacteante. O espírito desta
“Canção espiritual”, a qual joga com uma estranha ambiguidade, articula-se mais
nitidamente na última estrofe:
Mendigo ali na pedra velha
Parece morto a rezar.
Da colina desce suave um pastor
E canta um anjo no arvoredo,
perto do arvoredo,
as crianças embalando.
Uma vez que ele já não se refere
ao “espiritual” do clero, o poeta poderia, porém, nomear aquilo que está na
relação com o espírito, bem ou mal, como o “Geistige”, e falar da geistige
Dämmerung [crepúsculo espiritual] e da geistige Nacht [noite espiritual]. Por
que é que ele evita a palavra “geistig”? Porque o “espiritual” no sentido de “geistig”
nomeia o oposto do material. Esta oposição representa a diferenciação entre
dois domínios e nomeia, falando à maneira platónico-ocidental, o abismo entre o
suprasensível (nohton) e o sensível (aisJhton).
Entendido deste modo, o
espiritual, que entretanto se tornou o racional, o intelectual e o ideológico,
pertence, juntamente com os seus contrários, à perspectiva sobre o mundo do
género em decomposição. Deste separa-se, no entanto, a “escura deambulação” da
“alma azul”. O crepúsculo da noite, para o qual declina o estranho, é tão
incapaz como o trilho do forasteiro de ser chamado de “geistig”. O desterro é
determinado espiritualmente [geistlich], pelo espírito, e não espiritualmente
[geistig] no sentido metafísico.
Mas, então, o que é o espírito? Em
“Grodek”, sua última poesia, Trakl fala da “chama quente do espírito” (201). O
espírito é o flamejante e, talvez apenas como tal, algo (60) que sopra. Trakl
não entende o espírito, em primeiro lugar, como pneuma, como algo espiritual,
mas antes como chama que flameja, como labareda que aflige e desconcerta. O
flamejar é a luz em brasa. O flamejante é o fora-de-si, que clareia e deixa resplandecer, que no processo também devora, podendo consumir tudo até ao
branco das cinzas.
“A chama é o irmão do mais pálido”,
diz-se na poesia “Metamorfose do Mal” (129). Trakl vê o “espírito” sob o modo
pelo qual se nomeava a palavra “espírito” no seu significado originário, pois
gheis quer dizer: estar furioso, desconcertado, fora de si.
Entendido deste modo, o espírito essencia-se
na possibilidade do manso e do destruidor. O manso não abate de modo algum
aquele fora-de-si do flamejante, deixando-o antes reunir-se no sossego do
amistoso. O destruidor advém do desenfreado, que se consome no própria agitação
e assim exerce a maldade. O mal é sempre o mal de um espírito. O mal e a sua
maldade não é o sensível, o material. Também não tem carácter meramente
“espiritual” [geistig]. O mal é espiritual [geistlich] enquanto agitação
desconcertante que se consome, ardendo, até à cegueira, que desloca para a
dispersão da desgraça e que ameaça chamuscar o desabrochar reunido do manso.
Mas onde repousa aquilo que no
manso reúne? Quais são as suas rédeas? Que espírito as segura? Como está como
se poderá tornar “espiritual” [geistlich] o ser humano?
Na medida em que a essência do
espírito repousa no flamejar, ele abre via, clareia-a e conduz ao caminho.
Enquanto chama, o espírito é a tormenta que “o céu incorre” e “Deus alcança”
(187). O espírito expele a alma para o estar a caminho onde acontece uma
deambulação que leva a dianteira. O espírito desloca para o estranho. “A alma é
um estranho sobre a terra.” O espírito é aquilo que a alma. É o animador.
Contudo, a alma, por sua vez, protege o espírito, e fá-lo de uma forma tão
fundamental que o espírito provavelmente nunca será espírito sem a alma. Ela
“alimenta” [61] o espírito. De que maneira? Da única maneira possível: a alma
oferece como feudo ao espírito a chama que é própria da sua essência. Esta
chama é o crepitar da melancolia, a “mansidão da alma solitária” (55).
O solitário não isola até à
dispersão, à qual se abandona toda a mera solidão. O solitário traz a alma até
ao único, reúne-a no uno e põe, deste modo, a sua essência a caminhar. Enquanto
alma solitária, ela é a caminhante. Ao ardor do seu ânimo compete levar o peso
do destino à caminhada – e assim leva também a alma ao encontro do espírito.
Ao espírito empresta a tua chama,
fervilhante melancolia;
assim principia uma poesia “A
Lúcifer”, i.e., o que transporta a luz, que espalha a sombra do mal. (Volume do
espólio da edição de Salzburg, p.14.)
A melancolia da alma brilha
apenas onde a alma, na sua deambulação, penetra na mais longínqua lonjura da
sua própria essência, i.e., da sua essência deambulante. Tal acontece quando
ela depara com o semblante do azul e contempla o que do azul emana. Assim
contemplando, a alma é “a grande alma”.
Oh dor, oh flamejante
contemplação
Da grande alma!
“A trovoada” (183)
A grandeza da alma mede-se pela
forma como ela é capaz de conseguir a contemplação flamejante, através da qual
ela se sente em casa na sua dor. À dor presta-se uma essência em si contraversa
A dor arrebata “flamejando”. O
seu arrebatamento insere a alma deambulante na articulação da tormenta e da
caça, as quais, incorrendo no céu, querem alcançar Deus. Assim, parece que o
arrebatamento chegaria a dominar aquilo que é o seu rumo, em vez de o deixar
vigorar na sua luz velada.
[62] Disto, no entanto, é capaz a
“contemplação”. Ela não extingue o arrebatamento flamejante, antes reinsere-o,
de novo, na conformidade da percepção contemplativa. A contemplação é o
rebatamento na dor, através da qual esta obtém a sua suavidade e, por esta, o
seu vigorar desencobridor e condutor.
O espírito é chama. Ela ilumina
fervilhando. A iluminação acontece no olhar da contemplação. Para tal
contemplação propicia-se a chegada do que brilha, no interior do qual vem à
presença tudo o que se essencia. Esta contemplação flamejante é a dor. Para
cada opinar que represente a dor a partir do sentir, permanece fechada a
essência da dor. A contemplação flamejante determina a grandeza da alma.
Enquanto dor, o espírito, que dá
“grande alma”, é o animador. A alma assim doada, é, porém, a vivificadora. É
por isso que cada um que viva segundo o sentido da alma é dominado pela
característica da própria essência da
alma, pela dor. Tudo o que vive é doloroso.
Apenas o que vive de alma plena é
capaz de realizar a sua essência. Graças a esta capacidade, aquele que vive de
alma plena tem a aptidão de alcançar o uníssono do suporte mútuo através do
qual tudo o que vive está em co-pertença. Conforme com esta conexão da aptidão,
tudo o que vive é apto, i.e., é bom. Mas o bom é dolorosamente bom.
Conforme ao traço fundamental da
grande alma, tudo o que é animado não é apenas dolorosamente bom mas antes, e
apenas desta forma, verdadeiro. Pois graças à contraversão da dor, o vivo pode
desencobrir encobertamente o seu co-presente na sua respectiva modalidade,
deixando-o ser verdadeiro.
A última estrofe de uma poesia
principia desta maneira (26):
Tão dolorosamente bom e
verdadeiro é, o que vive;
Poder-se-ia pensar que o verso
toca o doloroso apenas de fugida. Na verdade, ele introduz o dizer de toda a
estrofe, a qual permanece disposta a silenciar a dor. Para a ouvir, não podemos
ir contra os sinais de pontuação [63], que foram cuidadosamente introduzidos, e
nem sequer os podemos modificar. A estrofe prossegue:
E calmamente és tocado por uma
antiga pedra:
Aqui soa de novo o “calmamente”,
que, sempre que é utilizado, permite deslizar para as conexões essenciais. De
novo surge “a pedra”, a qual, se aqui nos fosse permitido fazer um cálculo,
terá surgido mais do que trinta vezes ao longo do poema de Trakl. Na pedra
esconde-se a dor, a qual, ao petrificar-se, a si mesma se guarda no fechado da
rocha, em cuja aparição, a origem remota ilumina a partir do quieto ardor da
primeira madrugada, a qual, enquanto começo que vai adiante, vem ao encontro de
tudo o que devém e caminha e a ele traz a jamais alcançável chegada da sua
essência.
A velha rocha é a própria dor na
medida em que, à maneira da terra, olha os mortais. Os dois pontos depois da
palavra “pedra” no fim do verso mostram que, aqui, a pedra fala. A própria dor
tem a palavra. Desde há muito silenciosa, ela diz aos caminhantes que seguem o
forasteiro, nada menos do que o seu próprio vigorar e persistir.
Em verdade, para sempre estarei
convosco.
Conseguindo ainda escutar na
folhagem dos ramos verdes o precocemente falecido, os caminhantes respondem a
este dito de dor com as palavras do verso seguinte:
Oh boca! que no salgueiro de
prata estremece.
Toda a estrofe desta poesia
corresponde ao fim da segunda estrofe de um outro, destinado “A um morto
precoce”:
E no jardim ficou para trás o
semblante prateado do amigo,
Escutando na folhagem ou na velha
rocha.
[64] A estrofe, que começa com
Tão dolorosamente bom e
verdadeiro é, o que vive;
traz, simultaneamente, a
ressonância catártica do princípio da terceira parte da poesia, à qual
pertence:
Quão doente parece tudo o que
devém!
O perturbado, o inibido, o
desgraçado e irremediado, todo o penar daquilo que está em queda é, na verdade,
apenas a aparência única na qual se esconde o “verdadeiro”: a dor que em tudo
permanece. Portanto, a dor não é nem o adverso nem o útil. A dor é o favor do essencial
de tudo o que se essencia. A simplicidade da sua essência contraversa determina o devir a partir da
escondida primeira madrugada e afina-o na serenidade da grande alma.
Tão dolorosamente bom e
verdadeiro é, o que vive;
E calmamente és tocado por uma
antiga pedra:
Em verdade, para sempre estarei
convosco.
Oh boca! que no salgueiro de
prata estremece.
A estrofe é o canto puro da dor,
cantada para que ela complete a poesia constituída de três partes, chamada a
“Serena Primavera”. A serenidade da primeira madrugada de toda a essência com
carácter de início estremece a partir da quietude da dor escondida.
A essência contraversa da dor -
ou seja, o facto de a dor, que arrebata para trás, arrebatar, na verdade, para
a frente – aparece, facilmente, à representação habitual como sendo absurda.
Contudo, nesta aparência esconde-se a simplicidade essencial da dor.
Flamejando, ela leva o mais longe possível quando, ao contemplar, se detém a si
própria, da forma mais íntima possível.
Assim, enquanto característica
fundamental da grande alma, a dor permanece como pura correspondência com a
sacralidade do azul. Isto porque esta sacralidade ilumina de encontro ao
semblante da alma, assim se retirando para a sua própria profundidade. Ao
essenciar-se, o sagrado demora-se apenas ao deter-se nesta retirada, remetendo
[65] o olhar para o dúctil.
A essência da dor, a sua conexão
escondida com o azul, é verbalizada na última estrofe de uma poesia chamada
“Transfiguração” (144):
Flor azul,
Que suave soa na rocha amarelada.
A “for azul” é o “manso ramo de
centáureas-azuis” da noite espiritual. As palavras cantam a fonte do poço, da
qual brota o poetizar de Trakl. Elas concluem, elas trazem igualmente a
“transfiguração”. O canto é canção, tragédia e epopeia num só. A poesia é única
entre todas porque, nela, a lonjura do olhar, a profundidade do pensar, a
simplicidade do dizer resplandecem, de uma maneira indizível, intimamente e
para sempre.
A dor apenas é dor verdadeira
quando ela serve a chama do espírito. A última poesia de Trakl chama-se
“Grodek”. Tem sido elogiada como poesia de guerra embora seja infinitamente
mais do que isso porque é algo diferente da poesia de guerra. Rezam os seus
últimos versos (201):
A chama quente do espírito é hoje
alimentada por uma dor violenta,
Os netos não nascidos.
Aqueles que aqui são chamados de
“netos” não são, de modo algum, os filhos que ficaram por gerar, os filhos dos
filhos tombados que descenderam do género em decomposição. Se se tratasse
apenas disso, do corte da reprodução dos géneros que até hoje viveram, então
este poeta deveria rejubilar com tal fim. No entanto, ele lamenta-se. É claro
que o faz com uma “tristeza que também é orgulho”, a qual, flamejando,
contempla o sossego dos não nascidos.
Os não nascidos chamam-se netos
porque não podem ser filhos, i.e., não podem ser descendentes imediatos do
género decadente. Entre eles e este género vive uma outra geração. Ela é
diversa porque é diversa conforme [66] a sua diferente origem essencial, a qual
provém da madrugada do não nascido. A “dor violenta” é o contemplar que sobre
tudo flameja e que olha para a madrugada ainda escondida daquele morto, ao
encontro do qual morreram os “espíritos” dos que tombaram precocemente.
Mas quem é que abriga esta dor
violenta de modo a que ela alimente a chama quente do espírito? Aquilo que é do
cunho deste espírito pertence àquilo que conduz ao caminho. Aquilo que é cunho
deste espírito chama-se “espiritual [geistlich]”. É por isso que o poeta deve,
antes de tudo, e, ao mesmo tempo de um modo exclusivo, chamar “espiritual
[geistlich]” ao crepúsculo, à noite, aos anos. O crepúsculo deixa irromper o
azul da noite, inflama-o. A noite flameja como o espelho iluminador do lago
estrelado. O ano inflama pois aposta no caminho do percurso solar, na sua
subida e na sua descida.
Que espírito será esse, do qual
desperta este “espiritual” e por este é seguido? É aquele espírito que na
poesia “A um morto precoce” é expressamente chamado de “o espírito de um morto
precoce”. É o espírito que lança ao desterro aquele “mendigo” da “Canção
espiritual” (20), e de tal modo que, como diz a poesia “Na aldeia” (81), ele
permanece sendo “o pobre”, “o que morreu de espírito só”.
O desterro essencia-se como o
espírito puro. O desterro é o brilhar do azul, que flameja mais
silenciosamente, que jaz na sua profundidade, e que inflama uma infância mais
calma para que ela entre no dourado do início. O semblante dourado da figura de
Élis olha de encontro a esta madrugada. No seu olhar, ela guarda a chama
nocturna do espírito do desterro.
Assim, o desterro não é nem
apenas o estado do que morreu precocemente nem o espaço indeterminado da sua
estadia. O desterro é ele próprio, à maneira da sua chama, o espírito e,
enquanto este, é o que reúne. O que reúne conduz a essência dos mortos de volta
à sua infância mais calma, e abriga-a como o cunho que ainda não veio á luz,
aquele que cunhará o futuro género. Aquilo que, no desterro, reúne, [67] poupa
o não nascido à simples morte, para um ressuscitar futuro do género a partir da
madrugada. Enquanto espírito do manso, o que reúne acalma simultaneamente o
espírito do mal. O tumulto deste eleva-se até à sua maldade mais extrema,
quando ele chega a fazer irromper a discórdia entre os géneros e invade o
fraternal.
Mas ao mesmo tempo, esconde-se na
simplicidade mais calma da infância a duplicidade fraternal do género humano,
que aí se reuniu. No desterro, o espírito do mal nem é exterminado e negado nem
é soltado e afirmado. O mal é metamorfoseado. Para passar por tal
“metamorfose”, a alma deve voltar-se para a grandeza da sua essência. A
grandeza desta grandeza será definida através do espírito do desterro. O
desterro é a reunião através da qual o ser humano se volta a abrigar na sua
infância mais calma, e esta se volta a abrigar na madrugada de um outro começo.
Enquanto reunião, o desterro possui a essência do lugar.
Em que medida, porém, é que o
desterro é o lugar de um poema, e sobretudo daquele poema que as poesias de
Georg Trakl trazem à linguagem? Será que o desterro tem realmente uma relação
com a poesia, e será que a tem a partir de si próprio? E mesmo que vigore uma
tal relação, como é que o desterro deverá recolher para si, enquanto lugar
apropriado para ele, um dizer poético, determinando-o a partir de si?
Não será o desterro senão um
silenciar da calma? Como pode o desterro trazer ao caminho um dizer e um
cantar? No entanto, o desterro não é a aridez do falecimento. No desterro, o
forasteiro atravessa a despedida do género que existiu até agora. Ele está a
meio caminho sobre um trilho. De que espécie é este trilho? O poeta di-lo com
suficiente clareza no verso final, e bem destacado, do poema “Declinar do
Verão” (169):
[68] Se um cervo azul se
lembrasse do seu trilho,
Da eufonia dos seus anos
espirituais!
O trilho do forasteiro é “a
eufonia dos seus anos espirituais”. Os passos de Élis ressoam. Os passos
ressonantes brlham através da noite. Perde-se a sua eufonia no vazio? Estará
aquele que morreu para a madrugada desterrado, no sentido de solto, ou estará
ele retirado no sentido de eleito, i.e., reunido numa reunião, que reúne mais
mansamente e chama mais suavemente?
As segunda e terceira estrofes do
poema “A um morto precoce” fornecem uma pista para as nossas questões (135):
Aquele porém desceu os degraus de
pedra do Monte do Monge,
Um sorriso azul no semblante e
estranhamente envolvido
Pela sua mais calma infância, e
morreu;
E pelo jardim ficou o semblante
prateado do amigo,
À escuta na folhagem ou no antigo
rochedo.
A alma cantou a morte, a
decomposição verde da carne
E era o rumor da floresta,
O íntimo lamento do cervo.
De torres crepusculares ressoavam
os sinos azuis da tarde, sem parar.
Um amigo escuta o forasteiro.
Escutando desta forma, ele segue o desterrado e torna-se, assim, ele próprio o caminhante, torna-se um forasteiro.
A alma do amigo escuta o morto. O semblante do amigo é um semblante “morto”
(143). Ele escuta ao mesmo tempo que canta a morte. É por isso que esta voz
cantadora é “a voz de pássaro do semelhante ao morto” (“O caminhante” 143). Ela
corresponde à morte do forasteiro, ao seu declínio no azul da noite. Com a
morte do desterrado, porém, ele canta também a “decomposição verde” daquele
género, do qual ele se “separou” pelo escuro caminhar.
Cantar significa louvar e
guardar o que é elogiado no canto. O amigo que escuta é um dos “pastores
laudadores” (143). No entanto, a alma do amigo, que “com prazer as fábulas do
mago branco escuta”, apenas pode então cantar seguindo o desterrado, se o
desterro soar de encontro ao sucessore, se ressoar a
eufonia que aí toca, “se”
- tal como reza a “Canção da tarde” (83) - “a mais escura eufonia descer sobre
a alma”.
Neste caso, o espírito do morto
precoce brilha no fulgor da madrugada. Os anos espirituais desta madrugada são
o tempo verdadeiro do forasteiro e do seu amigo. No seu brilho, a nuvem, até aí
negra, torna-se dourada. Ela parece-se agora com o “bote dourado”, tal como o
coração de Élis se balouça no céu solitário.
A última estrofe da poesia “A um
morto precoce” canta (136):
Nuvem dourada e tempo. Em solitária
câmara
Convidas amiúde o morto,
Deambulas em conversa sincera sob
os olmos ao longo do rio verde.
À eufonia dos passos do
forasteiro corresponde o convite do amigo para conversar. O dizer do amigo é o
caminhar cantante ao longo do rio, o seguir no declínio no azul da noite, que é
animado pelo espírito do morto precoce. Em tal conversa, o amigo cantor olha
para o desterrado. Através do seu olhar, ele torna-se, aos olhos do forasteiro,
o irmão. Com o forasteiro, o irmão alcança, caminhando, a estadia mais calma na
madrugada. No “Canto do Desterrado” ele pode chamar (177):
Ó, o morar no azul animado da
noite.
Mas ao mesmo tempo que o amigo
que escuta canta o “Canto do Desterrado”, e assim se torna [70] irmão do
desterrado, o irmão do forasteiro torna-se antes, através deste, o irmão da sua
irmã, cuja “voz lunar soa através da noite espiritual”, o que é dito pelo verso
final da poesia “Entardecer espiritual” (137).
O desterro é o lugar do poema
porque a eufonia dos passos ressonantes-iluminadores do forasteiro inflama a
escura caminhada dos que lhe sucedem no cantar que escuta. O escuro caminhar,
porque é antes um caminhar seguidor, ilumina então a alma deles em direcção ao
azul. A essência da alma cantora é então apenas um único olhar para diante, na
direcção do azul da noite, que abriga a madrugada mais calma.
Um instante azul é apenas mais
alma.
assim se chama no poema
“Infância” (104)
Assim se consuma a essência do
desterro. Mas o desterro apenas se torna o lugar consumado do poema, quando
ele, enquanto reunião da infância mais calma, e, ao mesmo tempo, enquanto
sepultura do forasteiro, reúne em si aqueles que seguem no declínio o morto
precoce. Isto dá-se quando eles, ao escutarem o morto precoce, transformam a
eufonia do seu trilho em som da linguagem falada, assim se tornando os
desterrados. O seu cantar é o poetizar. Em que medida? O que significa
poetizar?
Poetizar significa:
voltar-a-dizer, nomeadamente, a eufonia dirigida a nós pelo espírito do
desterro. Antes de se tornar um dizer no sentido de proferir, poetizar é, na
sua maior parte, um escutar. O desterro recolhe o escutar, de antemão, na sua
eufonia, para que esta ressoe através do dizer no qual ecoa. A frescura lunar
do azul sagrado da noite espiritual atravessa, soando e brilhando, tudo o que
se mostra e se diz. A linguagem destes torna-se assim um voltar-a-dizer,
torna-se: poesia. O falar da poesia abriga o poema como o não-dito essencial. O
voltar-a-dizer que é chamado ao escutar torna-se, desta maneira, “mais
piedoso”, i.e., mais dócil perante a fala do trilho que o forasteiro usa para
ser o primeiro a ir da escuridão [71] da infância à mais calma e mais clara
madrugada. É por isto que o poeta que escuta pode dizer a si próprio:
Com mais piedade conheces tu o
sentido dos anos escuros,
Frescura e Outono em quartos
solitários;
E em azul sagrado vão ressoando
os passos que iluminam.
“Infância” (104)
A alma, que canta o Outono e o
que resta do ano, não cai em decadência. A sua piedade é inflamada pela chama
do espírito da madrugada e é, portanto, fogosa:
Ó, a alma que cantava baixinho a
canção dos juncos amarelecidos;
Fogosa piedade.
como se diz no poema “Sonho e
anoitecer do espírito” (157). O anoitecer aqui referido não é um mero
obscurecimento do espírito, tal como a loucura não é uma deficiência. A noite,
que se apodera do irmão cantor do forasteiro, continua a ser a “noite
espiritual” daquela morte em que o desterrado morreu na direcção dos “arrepios
dourados” da madrugada. Olhando para este morto, o amigo que escuta olha para
fora, para a frescura da infância mais calma. Entretanto, este olhar continua a
ser um separar-se do género desde há muito nascido, o qual foi esquecido pela
infância mais calma, enquanto começo ainda guardado, e jamais foi parido pelo
não-nascido. A poesia “Anif”, nome de um castelo próximo de Salzburg, diz
(134):
Grande é a culpa do nascido. Ai,
arrepios dourados
Da morte,
Pois a alma sonha com mais
frescos florescimentos.
Mas não é apenas o separar-se do
velho género que fica no “Ai” da dor. Este separar-se é uma de-cisão encoberta
e destinada para a despedida cujo chamamento [72] provém do desterro. O
caminhar pela sua noite é “infinita tortura”. Mas isto não significa uma dor
sem fim. O infinito está livre de qualquer limitação e atrofiamento finitos. A
“infinita tortura” é dor completa, perfeita, que atingiu o máximo da sua
essência. É somente na caminhada pela noite espiritual, na qual cada caminhar
se despede sempre do não espiritual, que a simplicidade do contraverso, que
vigora em toda a dor, entra no puro jogo. A masidão do espírito é chamada a
caçar o deus, e a sua timidez é chamada a assaltar o céu.
Na poesia “A noite” (187) diz-se:
Infinita tortura,
Pois tu caçaste o deus
OHmanso espírito,
Lamentando na cascata de água,
Nos pinheiros ondulantes.
O arrebatamento flamejante deste
assaltar e deste caçar não é capaz de abater “a íngreme fortaleza”. Não derruba
o alcançado, antes o deixa ressurgir no olhar das vistas do céu, cuja frescura
pura encobre o deus. O meditar cantante de um tal caminhar pertence à fronte de
uma cabeça cunhada por uma dor completa. Por isso se encerra a poesia “A noite”
(187) com os versos:
Assalta o céu
Uma cabeça petrificada.
A isto corresponde o final da
poesia “O coração” (180):
A íngreme fortaleza.
Oh coração
Que cintilas na frescura da neve.
Então, o trítono das três poesias
tardias, “O coração”, “A trovoada” e “A noite”, encontra-se tão encobertamente
afinado no único e no mesmo do cantar do desterro [73], que o discurso agora
ensaiado sobre o poema se acha confirmado na decisão de deixar ressoar as três
poesias mencionadas no tom do seu canto, sem mais explicações.
A caminhada no desterro, o olhar
das vistas do invisível e a dor completa pertencem-se mutuamente. O paciente
conforma-se com a fenda da dor. Apenas o paciente será capaz de seguir o
retorno à madrugada mais matinal do género, cujo destino guarda um velho álbum
no qual o poeta, sob o título “Num velho álbum” (55), inscreve esta estrofe:
Com humildade abaixa-se na dor o
paciente
Ressoando da eufonia e da branda
loucura.
Vede! Já amanhece.
Em tal eufonia do dizer, o poeta
traz ao resplandecimento as vistas iluminadoras, nas quais deus se esconde do
caçar louco.
Portanto, é apenas “Murmurar à
tarde”, quando o poeta canta na poesia assim intitulada (54):
Sonha a fronte as cores de deus,
Sente as asas mansas da loucura.
O que poetiza apenas se torna
poeta na medida em que ele segue aquele “louco” que morreu em direcção à
madrugada e que, a partir do desterro e através da eufonia dos seus passos,
chama pelo irmão que o segue. Assim olha o semblante do amigo para o semblante
do estranho. O brilho deste “instante” toca o dizer do que escuta. No fulgor
tocante, que brilha a partir do lugar do poema, ondula aquela onda que empurra
o dizer poético para a sua linguagem.
Portanto, de que espécie é a
linguagem da poesia de Trakl? Ela fala, ao mesmo tempo que corresponde àquele
estar a caminho, em que se encontra o [74] forasteiro precedente. O trilho que
ele tomou afasta-se do velho género degenerado. O trilho conduz ao declínio para
a madrugada destinado ao género não nascido. A linguagem do poema, que tem o
seu lugar no desterro, corresponde ao regresso do género humano não nascido ao
começo sossegado da sua essência mais calma.
A linguagem desta poesia fala a
partir da transição. O seu trilho passa pelo declínio do decadente em direcção
ao declínio para o azul crepuscular do sagrado. A linguagem do poema fala a
partir da travessia por sobre o lago nocturno da noite espiritual, e através
dele. Esta linguagem canta o canto do regresso desterrado a casa, o qual, vindo
do tardio da decomposição, entra na madrugada do começo mais calmo e ainda não
acontecido. Nesta linguagem fala o estar a caminho, através de cujo fulgor
surge o iluminador-sonante da eufonia dos anos espirituais do forasteiro
desterrado. O “Canto do Desterrado” canta, segundo as palavras da poesia
“Revelação e declínio” (194), “a beleza de um género que torna a casa”.
Porque a linguagem deste poema
fala a partir do estar a caminho do desterro, ela também a partir daquilo que
ela abandona na despedida, e a partir daquilo para que se dirige a despedida. A
linguagem do poema é essencialmente plurívoca, e é-o à sua própria maneira. Não
ouviremos nada do dizer da poesia enquanto o enfrentarmos apenas com um
qualquer sentido embotado de uma opinião simplista.
Crepúsculo e noite, declínio e
morte, loucura e cervo, lago e rochedo, voo de pássaro e bote, forasteiro e
irmão, espírito e deus, do mesmo modo as palavras das cores: azul e verde,
branco e preto, vermelho e prateado, dourado e escuro, dizem de todas as vezes
o multifacetado.
O “verde” é decomposto e
floresce, o “branco” é pálido e puro, o “preto” encerra na penumbra e abriga
escarmente [75], o “vermelho” tem uma carnalidade púrpura e uma suavidade
rósea. O “prateado” é a palidez da morte e o cintilar das estrelas. O “dourado”
é o brilho do verdadeiro e o “riso horrível do ouro” (133). O plurívoco aqui
referido é, à primeira vista, apenas ambíguo. Mas esta ambiguidade na sua
totalidade é posta de um lado em oposição a um outro lado que é determinado
pelo lugar mais íntimo do poema.
A poesia fala de uma ambiguidade
ambígua. Contudo, esta plurivocidade do dizer poético não se dissolve numa
plurivocidade indefinida. O som plurívoco do poema de Trakl provém de uma
reunião, i.e., de uma unissonância que, dizendo respeito a si própria, fica
sempre por dizer. O plurívoco deste dizer poético não tem nada a ver com a
incerteza do desleixado, mas antes com o rigor do que deixa, do que se
comprometeu com o cuidado da “contemplação justa”, com isso se conformando.
É frequente a dificuldade com que
demarcamos o dizer das poesias de Trakl, que estabelece com segurança uma
plurivocidade, da linguagem de outros poetas, cuja plurivocidade provém do
indefinido de uma insegurança de uma poesia feita às apalpadelas, porque lhes
falta o poema autêntico e o seu lugar. O rigor extraordinário da linguagem
essencialmente plurívoca de Trakl é, num sentido superior, tão unívoca, que ela
permanece superior a toda a exactidão técnica do mero conceito científico-unívoco.
Nesta mesma plurivocidade da
linguagem, determinada a partir do lugar do poema de Trakl, falam também as
palavras frequentes que pertencem ao mundo das representações bíblicas e
eclesiásticas. A transição do velho género ao não nascido faz-se através deste
domínio e da sua linguagem. Se, em que medida e em que sentido a poesia de
Trakl fala cristamente, de que modo modo se pode dizer que o poeta era
“cristão”, o que significa neste caso e em absoluto [76], “cristão”,
“cristianismo”, “cristandade”, “carácter cristão”, tudo isto implica questões
essenciais. A sua discussão ficará, contudo, suspensa no vazio enquanto o lugar
do poema não for cuidadosamente estabelecido. Para além, a discussão destas
matérias exige uma reflexão para a qual não são suficientes nem os conceitos da
metafísica nem os conceitos da teologia da igreja.
Um juízo sobre o carácter cristão
do poema de Trakl deveria, antes de tudo, ter em conta as últimas poesias
“Lamento” e “Grodek”. Deveria perguntar-se: por que é que aqui o poeta, aquando
da extrema urgência do seu último dizer, não clamou por Deus ou por Cristo, uma
vez que é tão resolutamente cristão? Por que é que, em vez disso, ele chama
pela “sombra vacilante da irmã”, sendo esta a “saudosa”? Por que é que a canção
não termina com um olhar confiante sobre a salvação cristã, mas antes com o
nome dos “netos não nascidos”? Por que é que a irmã também aparece na outra
poesia, “Lamento” (200)? Por que é que “a eternidade” se chama aqui “a onda
gelada”? Será que isto é pensar de uma forma cristã? Aqui, nem sequer se trata
de desespero cristão.
Mas que canta este “Lamento”? Não
estará a ressoar neste “Irmã... vê...” a simplicidade íntima daqueles que, sob
todas as ameaças, através da privação extrema do são, prosseguem na caminhada,
indo ao encontro do “semblante dourado do homem”?
A unissonância rigorosa da
linguagem plurívoca a partir da qual fala a poesia de Trakl, o que quer, ao
mesmo tempo, quer dizer: cala, corresponde ao desterro como lugar do poema. Ter
em conta este lugar, de uma forma apropriada, já dá que pensar. E assim
chegamos ao fim, tentando questionar a localidade deste lugar.
III
A última indicação para o
desterro como o lugar do poema foi-nos dada, no primeiro passo do nosso
discurso, pela penúltima estrofe do poema “Alma de Outono” (124). Ela nomeia
[77] os caminhantes que seguem o trilho do forasteiro através da noite
espiritual, para assim “morarem” no seu “animado azul”.
Em breve se escapam peixe e
cervo.
Alma azul, escuro caminhar
Separou-nos logo dos queridos,
dos outros.
A região livre, aquela que
promete e assegura um morar, é nomeada na nossa língua por “terra”. A passagem
para a terra do forasteiro acontece ao fim da tarde, através do crepúsculo
espiritual. Por isso reza o último verso da estrofe:
O fim da tarde muda o sentido e a
imagem.
A terra à qual desce o morto
precoce, é a terra do poente. A localidade do lugar, que reúne em si o poema de
Trakl, é a essência escondida do desterro e chama-se “Ocidente”. Este ocidente
é mais velho, ou seja, é anterior, e por isso mais prometedor que o ocidente
representado à maneira platónico-cristã, ou mesmo, à maneira europeia. Porque o
desterro é o “começo” de um ano do mundo em ascensão, e não o abismo da
decadência.
O ocidente que se esconde no
desterro não decai mas permanece, esperando pelos seus habitantes, enquanto
terra do declínio para a noite espiritual. A terra do declínio é a passagem
para o princípio da madrugada que neste princípio se esconde.
Se atendermos a isto, será que
podemos considerar ainda um acaso que duas das poesias de Trakl se refiram,
justamente, ao ocidente? Uma é intitulada “Ocidente” (171 ss.). A outra
chama-se: “Canção ocidental” (139 s.). Ela canta o mesmo que o “Canto do
desterrado”. A canção abre com o espanto de um chamamento em veneração:
Oh, da alma o nocturno bater de
asas:
[78] O verso termina com dois
pontos que encerram tudo o que se lhes segue, até à passagem do declínio ao
princípio. Nesta parte da poesia, antes dos dois versos finais, existem uns
segundos dois pontos. A eles segue-se a palavra simples: “Um género”. O “Um”
está acentuado. Tanto quanto me apercebo, trata-se da única palavra impressa de
um modo acentuado em toda a poesia de Trakl. Este “Um género” acentuado abriga
o tom de base a partir do qual o poema deste poeta cala o segredo. A unidade do
um género brota do cunho que, a partir do desterro, a partir do silêncio mais
silencioso que vigora no desterro, a partir da sua “fala da floresta”, a partir
da sua “medida e lei” através “dos trilhos enluarados dos desterrados”, reúne
com simplicidade a discórdia dos géneros na mais suave duplicidade.
O “Um” na expressão “Um género”
não quer dizer “um” em vez de “dois”. O “Um” também não quer dizer o igual de
uma igualdade monótona. A expressão “Um género” não nomeia aqui, de modo algum,
um estado de coisas biológico, não nomeia a “unissexualidade” nem a
“homossexualidade”. No “Um género” acentuado esconde-se o unificante que
unifica a partir do azul reunificador da noite espiritual. A expressão fala a
partir da canção na qual é cantada a terra do poente. Portanto, a palavra
“género” mantém aqui todo o seu significado completo e multifacetado,
anteriormente já mencionado. Ela nomeia, por um lado, o género histórico do
homem, a humanidade, por oposição aos restantes seres vivos (plantas e
animais). A palavra “género” nomeia, por outro lado, os géneros, as linhagens,
as estirpes, as famílias deste género humano. A palavra “género” nomeia,
igualmente, em qualquer dos casos, a duplicidade dos géneros.
O cunho, que cunha os géneros na
simplicidade do “Um género”, assim devolvendo ao suave da mais calma infância
as estirpes do género humano, e desse modo o próprio género humano, executa-se
de maneira a deixar a alma tomar o caminho para a “Primavera azul”. A alma
canta-a ao mesmo tempo que a cala. [79] A poesia “Na escuridão” (151) começa
com o verso:
A alma cala a Primavera azul.
O verbo “calar” é aqui usado no
sentido transitivo. A poesia de Trakl canta a terra do poente. Ela é todo um
chamamento pelo acontecimento apropriado do cunho certeiro, que diz a chama do
espírito para o suave. Na “Canção de Kaspar Hauser” (115) é dito:
Deus disse uma suave chama para o
seu coração:
O Homem!
O “disse” é aqui utilizado no
mesmo sentido transitivo do “cala” referido há pouco e do “sangra” da poesia
“Ao moço Élis” (97) e o “murmura” no último verso do poema “No Monte do Monge”
(113).
A fala de deus é o falar para,
que destina ao homem uma essência mais calma e o chama, através de tal falar
para, à correspondência, para a qual ele ressuscita a partir d verdadeiro
declínio para a madrugada. O “Ocidente” abriga o nascer da madrugada do “Um
género”.
Seria tacanhez julgarmos que o
cantor da “Canção ocidental” é o poeta da decadência. Ouviríamos mal e
embotadamente se, em relação à outra poesia de Trakl, também chamada “Ocidente”
(171 ss.), a citássemos sempre e apenas a partir da sua terceira e última
parte, ignorando obstinadamente a parte central deste tríptico, juntamente com
a sua preparação na primeira parte. A figura de Élis surge de novo na poesia
“Ocidente”, ao passo que “Helian” e “Sebastião em sonho” deixam de ser
referidos nas últimas poesias. Os passos do forasteiro ressoam. Eles são
afinados a partir do “espírito silencioso” da lenda ancestral da floresta. Na
parte central [80] desta poesia, está já superada a última parte, onde são
referidas as “grandes cidades”, “de pedra construídas / sobre a planície!”.
Elas possuem já o seu destino. É diferente daquele que foi dito “na verde
colina”, lá onde “ressoa a trovoada de Primavera”, na colina que se presta a
uma “justa medida” (134), e que também é chamada de “Colina do poente” (150).
Falou-se da “íntima ausência de história” em Trakl. Que quer dizer “história”
nesta apreciação? Se o nome significar a “historiografia”, i.e., a representação
do passado, então Trakl não tem história. O seu poetizar não carece de
“objectos” históricos.
Porquê? Porque o
seu poema é histórico no mais alto sentido. A sua poesia canta o destino do
cunho que arrasta o género humano para a sua essência ainda reservada, i.e.,
que o salva.
A poesia de Trakl canta o canto
da alma que, “estranho sobre a terra”, tem, antes de tudo, de alcançar a terra
enquanto pátria mais calma do género que regressa a casa.
Será isto um devaneio romântico
sonhador desligado do mundo técnico-económico das massas modernas? Ou
tratar-se-á da sabedoria clara do “louco” que vê e medita de uma forma
diferente dos relatores da actualidade que se esgotam na historiografia do
presente, presente cujo futuro contabilizado não é mais do que um prolongamento
da actualidade, um futuro que carece da chegada de um destino que, antes de
tudo, toca o homem no início da sua essência?
O poeta vê a alma, “um estranho”,
enviada para seguir um trilho, o qual não se dirige para a decadência, mas,
pelo contrário, para o declínio. Este abaixa-se e conforma-se com a morte
suprema, que é inaugurada com a morte do que faleceu para entrar na madrugada.
A ele se segue, na morte, o irmão enquanto cantor. Ao morrer, o amigo
per-noita, seguindo o forasteiro, a noite espiritual dos anos do desterro. O
seu cantar é o “canto de um melro aprisionado”. É assim que o poeta chama a uma
poesia dedicada a L. v. Ficker. O melro é o pássaro que chamou Élis [81] ao
declínio. O melro aprisionado é a voz de pássaro daquele que é semelhante à
morte. Ele está preso na solidão dos passos dourados que correspondem à viagem
do bote dourado, no qual o coração de Élis atravessa o lago estrelado da noite
azul, mostrando à alma, deste modo, a via da sua essência.
É a alma um estranho sobre a
terra.
A alma caminha rumo à terra do
poente, na qual vigora o espírito do desterro, e que, conforme com ele, é
“espiritual” [“geistlich”].
Todas as fórmulas são perigosas.
Elas forçam o que é dito à superficialidade de uma opinião fugaz e estragam
facilmente a reflexão. Mas também podem constituir uma ajuda, uma pista e um
apoio para a meditação perseverante. Sob esta reserva, podemos dizer, à maneira
de uma fórmula:
Um discurso sobre o seu poema
mostra-nos Georg Trakl como o poeta da ainda escondida Terra do Poente.
É a alma um estranho sobre a
terra.
A frase surge na poesia
“Primavera da alma” (149 s.). O verso, que faz a passagem para as últimas
estrofes, às quais pertence a frase, reza:
Morte suprema e a chama cantante
no coração.
Segue-se, então, a ascensão do
canto no eco puro da eufonia dos anos espirituais, que são atravessados pelo
forasteiro e seguidos pelo irmão, que começa a morar na terra do poente:
Mais negras rodeiam as águas os
belos jogos dos peixes.
Hora do lamento, silenciosa
contemplação do sol;
É a alma um estranho sobre a
terra. Espiritualmente entardece
[82] O azul sobre o bosque de
troncos abatidos e soa
Longo um sino escuro na aldeia;
toque de finados.
Suave floresce o mirto sobre as
pálpebras brancas do morto.
Murmurejam as águas na tarde que
declina
E mais escuramente reverdece a
mata na margem, alegria num
Róseo vento;
O suave canto do irmão sobre a
colina do poente.
(Tradução de Bernhard Sylla e
Vítor Moura)