A Alma escolhe

A Alma escolhe a sua Sociedade
E fecha a porta
Na sua divina Majestade
Nem um mais comporta

Indiferente — vê carros parando
No seu Portão
Indiferente se um Rei se ajoelha
Ali no chão

Sei que ela — de uma ampla nação —
Escolheu Um
Depois fechou as valvas de sua atenção
Como pedra.
                                                                                                                                        
Emily Dickinson

Platão: O Mito da Caverna e sua pedagogia da “formação”.


Este texto se pretende uma breve apresentação da elucidação que o filósofo Martin Heidegger concede do conceito de formação fixado pela filosofia platônica, a partir do esclarecimento do sentido próprio do “mito da caverna” apresentado no diálogo República.

Heidegger concebe a “formação” pensante (espiritual) numa unidade de essência e numa comunidade de origem com a verdade. Mas esclarece que a verdade, desde a filosofia de Platão, ganha uma outra determinação de origem, bem distinta da determinação da tradição pré-socrática. Portanto esta unidade de essência e esta comunidade de origem, em que os dois fenômenos se mostram em relação, exigem serem compreendidas por respeito tanto à nova determinação da essência da verdade quanto à natureza de sua modificação.
Que nova determinação ganha a essência da verdade? A partir de Platão a essência da verdade deixa de ser configurada como puro e simples desocultamento do ente, ocorrido a partir do próprio ente presente e passa a configurar-se enquanto desocultamento facultado pela Idéia. Esta se torna a própria essência da verdade enquanto a fonte de clareza do “o que” do ente.

Heidegger começa o seu esclarecimento do significado do "mito da caverna" indicando já o caráter próprio da Idéia aí apresentado. A Idéia é a luz que concede a imagem (forma) de todas as coisas, imagem na qual reside a própria entidade do ente. Tal imagem é, segundo Platão, aquilo através do qual o ente se mostra em sua e-vidência (em sua forma de aparecer). E uma vez que esta evidência se distingue do mero "aspecto", determinando-se, antes enquanto um sobressair [Heraustreten] (um aclaramento) através do qual o ente se presentifica [präsentiert], ou seja, se mostra a si mesmo, as idéias se apresentam enquanto con-formações do Ser do ente ele mesmo.  Se a compreensão do Ser, do ponto de vista da representação, se constitui da compreensão prévia do "o que" de cada ente visado (a arboreidade da árvore, a animalidade do animal, a dureza do duro, a amizade do amigo), a evidência enquanto a qual a Idéia se determina em cada ente se demonstra como a própria verdade do Ser, então compreendido enquanto presença (aparecimento). É esta a forma pela qual Heidegger concebe a Idéia instituída por Platão.
Quanto ao que significa para Platão designar a Idéia enquanto Ser do ente, esta questão só logra ser respondida se nos for possível compreender sob que ponto de partida a filosofia platônica se projeta para fixar o seu conceito de verdade. Heidegger elabora a sua investigação do sentido próprio do "mito da caverna" com a finalidade de esclarecer na formulação do mito em questão o momento preciso da mudança ocorrida no conceito de verdade (isto considerando, como afirma o filósofo, que o verdadeiro objeto do mito não é propriamente a verdade, mas antes a Idéia) – mudança na qual está implicada a fixação de um sentido orientado de formação. Uma nova verdade inteiramente concebida em vista de uma formação orientada nos seus termos.

Comecemos pelo fim para retornar orientados pelo telos ao princípio. Como Heidegger entende o intuito platônico de fixação de um modelo de formação? Em primeiro lugar, é preciso ter presente que o objetivo de Platão com a alegoria do "mito da caverna" é fazer-nos saber que a compreensão corrente das coisas obtidas pelo ver quotidiano, não é a compreensão do Ser dessas coisas. Ao contrário esta compreensão quotidiana nos concede apenas a sombra desse Ser, enquanto a qual as coisas sensíveis (visíveis pela olhar do corpo) se revelam. E é preciso ultrapassar o plano das sombras em direção à luz desde a qual as coisas podem se manifestar e manifestar o seu ser próprio - é preciso transcender os entes sensíveis e em seguida retornar a eles videntes da sua luz originária, da fonte de seu Ser-presente.

Se por um lado esta ultrapassagem dramatiza o sentido próprio da obtenção da verdade, por outro ela dramatiza de forma paralela o sentido próprio da “formação”. Esta dramatização se dá, por respeito à verdade, na forma da superação de etapas de clareza a qual implica sempre uma adaptação: "As ultrapassagens da caverna à luz do dia e desta de volta à caverna exigem uma adaptação dos olhos do escuro ao claro e do claro ao escuro."  Do escuro ao claro e deste àquele, esta imagem significa: da máxima ignorância (onde a verdade se reduz a sombras) à máxima compreensão (quando então a verdade se apresenta em toda sua claridade enquanto Idéia) e vice-versa - ou seja, do limite estreito das sombras, dos entes sensíveis, ao plano aberto do Ser. E do mesmo modo que no ver sensível os olhos experimentam grande perturbação ao passar do escuro ao claro e inversamente, também o ver relativo à alma, por sofrer perturbação análoga, deverá também ele, se quiser experimentar uma compreensão clara do Ser de cada ente, adaptar-se lentamente, numa progressão natural ao novo domínio de entes ao qual a alma se encontra lançada.

Em dois aspectos a verdade e a “formação” se vêem estruturadas de modo análogo. Do ponto de vista formal, a “formação” significa, como o esclarece Heidegger, “um ato formador, que imprime à coisa um caráter, segundo o qual ela se desenvolve.”  E este ato de formação impressor, isto é, en-formador, se faz no modo de uma con-formação da coisa a uma visão determinante e prévia, que, precisamente por este seu caráter, é pensada enquanto Vor-bild (“modelo”)  – termo com que a língua alemã traduz com a mesma conotação que o português, o sentido da Paidéia grega. Assim, a “formação” se demonstra inteiramente  como a impressão de um caráter e orientação recebida de um modelo. Esta estrutura que se apresenta enquanto configuração prévia e natureza conformativa, a qual caracteriza a “formação” se revela sendo a mesma que caracteriza a verdade, a partir do momento em que esta passa a se determinar enquanto Idéia. Pois a Idéia também ela se possibilita como modelo para impressão uma forma (con-formada) a cada coisa. Dito em outros termos: a Idéia se possibilita como forma prévia formadora e diretriz para as con-formações (idéias) das coisas ao seu Ser: a sua verdade (à Idéia).

O outro aspecto deste entretenimento entre verdade e “formação, verifica-se no próprio ato de ultrapassagem das etapas de clareza da verdade, que analogamente é sempre também um ato, paulatino, custoso e exigente de adaptação, de ultrapassagem da “não- formação” à “formação” (da apaideusia à Paidéia), pois para esta aqui também é preciso dar início a uma mudança de direção do olhar e do movimento em vista da obtenção de um aprumo que exige ser sustentado ao modo de poder se configurar como um verdadeiro comportamento. Pois como o precisa bem Heidegger “a essência da Paidéia não consiste em verter simples conhecimentos numa alma não preparada como no primeiro vaso vazio que se oferece a nós. A verdadeira “formação”, ao contrário toma e transforma a própria alma, a alma inteira, conduzindo o homem ao lugar de sua essência e acostumando-o a ele”     

A partir da concepção deste entretenimento verificado entre a verdade e a formação, Heidegger esclarece que por respeito à lentidão progressiva imposta à alma como meio de sua adaptação no novo âmbito de conhecimento alcançado (o que significa sempre também do novo aprumo obtido e do novo comportamento sustentado), tal lentidão concerne mesmo a mudança de direção exigida à alma que, "é no todo colocada na direção fundamental do seu esforço."  de modo que ela possa sofrer a nova experiência do seu modo de ver. Podemos apreciar com mais rigor o percurso transcendente da verdade em sua consonância íntima com a fixação da essência da formação. No "mito da caverna", o verdadeiro e a verdade, compreendidos respectivamente enquanto o desvelado e o desvelamento, designam os estágios de abertura que se possibilitam paulatinamente em cada lugar de estada do homem na caverna e fora dela. A “formação” se desdobra (se faz mais verídica) na medida em que a verdade se abre. Por sua vez a verdade se aclara (se amplia) na medida em que a “formação” se faculta a si mesma, através do esforço de adaptação e superação desdobrado desde o segundo domínio de clareza (onde a alma experimenta o seu primeiro movimento de liberdade) até à possibilidade de adaptação e permanência no âmbito de máxima claridade, para daí então, habilitar-se a retornar a caverna, desdobrando, assim, o último grau da formação e mesmo da verdade tomadas enquanto vitória frente à não-formação e ao ocultamento respectivamente.

Esta articulação da “formação” com a essência da verdade verificada por Heidegger, é o que o faz compreender e, consequentemente ensinar-nos que ao descrever o Ser da “formação”, Platão está abrindo simultaneamente uma percepção sobre esta mudança que está sendo procedida por sua filosofia na essência da verdade: " o mito não nos descreve somente o ser da formação, ele nos abre também uma percepção sobre uma mudança na essência da verdade."  Pois se a formação designa propriamente a redirecionamento da alma rumo à sua transferência de âmbito de apresentação inicial das sombras do ente para um outro de aparecimento do próprio ente, ao qual a alma deve primeiro adaptar-se, no sentido de possibilitando-se a ele, ganhar um novo aprumo e desdobrar um novo comportamento, seguramente está implicado neste sentido de formação tanto a modificação do que antes era aparente para a alma, do que lhe aparecia como verdadeiro, mas também o modo do seu aparecimento, isto é, o modo da verdade. 

O processo transitivo da formação e da essência da verdade pode ser resumido nestes termos: no primeiro plano, aquele da absoluta ausência de um caráter e de um modelo da verdade, temos simultaneamente a ausência de qualquer necessidade e liberdade de esforço para a apreensão da visão possibilitada: a verdade se basta nas sombras e a formação não se exige à alma. No segundo plano de domínio da verdade, o "mito alegoriza a escalada em direção ao mais verdadeiro indicando um momento em que o olhar da alma supostamente ainda não pudesse contemplar nas coisas o seu verdadeiro "o que". No primeiro grau tomando-se as sombras pelas coisas, o olhar sequer sabe do que se trata aquilo que vê; no segundo grau vendo as coisas elas próprias iluminadas por uma luz ainda artificial, o olhar já pode distingui-las de suas sombras, sem contudo vê-las com a necessária nitidez - aqui ainda o "o que" permanece senão oculto de todo ao menos confuso ao olhar.  Aqui no segundo plano, o da primeira experiência parcial da liberdade, onde se dá a liberação dos grilhões, a verdade sé oferece ainda de modo difuso, ao mesmo tempo que se põe pela primeira vez a exigência de um esforço de adaptação e sustentação do olhar em prol de uma maior visibilidade, a qual, contudo, não será ainda a visibilidade da essência, mas no melhor dos casos a visibilidade das coisas enquanto distintas de sombras. É por isto que comparando o ver de ambos os domínios, Platão afirma que a verdade concernente ao primeiro é maior que a do segundo para o novo olhar aturdido da alma neste segundo domínio onde ela só experimenta a liberdade de movimento que lhe permite ver o fogo, a fonte da luz projetada sobre os entes agora visados.

 A formação, bem como o momento essencial da verdade só entrarão no curso de sua consumação no terceiro plano, no aberto da luz solar, onde a alma deve fazer então o seu esforço supremo de adaptação e sustentação sob a mais pura e forte claridade - aqui a alma, pela primeira vez, poderá contemplar o ente verdadeiro, ou seja, o permanente de cada ente mutante. (Antes de seguir descrevendo a forma transcendente da verdade e da formação concebida por Platão, tal como a expõe Heidegger, vale a pena abrir este breve parêntese para ao menos indicar de modo sucinto e de acordo com a nossa possibilidade de compreensão presente o caráter próprio deste domínio dos entes não sensíveis que se apresentam por distinção aos entes sensíveis. No Platão: O Sofista, Heidegger problematizando a epistême, compreendida como uma das cinco determinações da disposição, esclarece o sentido próprio da determinação temporal que concerne ao ente não sensível. O que Platão denomina por sensível é fundamentalmente o mutante, e não sensível, por conseguinte, o permanente. Os entes relativos à epistême (ao saber científico), os verdadeiros conhecimentos, para dizê-lo em termos platônicos, são imutáveis e, portanto, sempiternos no sentido em que eles se dão enquanto uma cadeia ilimitada de agoras. Estando fora do tempo, isto é, fora da mutação, eles, contudo, não deixam de ser determinados pelo tempo enquanto permanências. Assim, quando se fala no novo domínio de entes ao qual a alma deve alcançar, está-se falando do domínio do conhecimento verdadeiro, onde os entes são aí as formas puras – imutáveis – dos entes mutantes. Formas puras significam o que se denominou acima enquanto "o que" de cada ente.)
 E por fim, concluindo a formação e definindo-se ao grau último da essência da verdade, a alma plenamente esclarecida deve voltar ao interior da caverna para lutar por submeter à não-formação à formação e ao velamento (à não-verdade) ao desvelamento, isto é, à verdade.

Só neste último grau se dá a perceber com precisão em que medida "o Ser da "formação" é fundado no Ser da verdade."  Formação significa, primeiramente, uma mudança de direção de um âmbito perspectivo pré estabelecido para um novo âmbito a ser conquistado pelo esforço de superação do âmbito anterior e ambientação e permanência no novo, mas significa também e de modo igualmente fundamental, o permanente esforço de sustentação do novo âmbito conquistado através da luta incessante do risco de prevalecimento renovado do âmbito superado. Se a formação exige a permanente luta contra uma não-formação sempre a espreita, portanto, nunca absolutamente superada, isto só pode ter o seu fundamento na própria essência da verdade, porquanto formação não é outra coisa que sustentação no "mais verdadeiro". E se a verdade é para Platão sempre um aumento de grau dela mesma em prol do seu máximo de realidade, aumento pensado enquanto a constante superação de um velamento do velado (condição já pre´-fixada no próprio termo privativo da palavra grega a-letheia, que indica já a ocultação na proveniência da verdade), isto significa que tanto a formação quanto a verdade têm que estar implicadas uma na outra essencialmente na luta pela obtenção do seu Ser  enquanto clareza e meio de deslocamento, contra o escuro e o impedimento de deslocamento.

Uma vez que a formação está implicada no curso mesmo da possibilitação da verdade e esta é compreendida por Platão não apenas enquanto desvelamento, mas, mais fundamentalmente, enquanto desvelamento ampliado, pois bem por isto o filósofo compreende a fonte das imagens sob a perspectiva da luz e por este motivo toma o fogo como metáfora preferencial para mimetizar o processo de ocorrência da verdade, é necessário apreciar melhor a fundamentação que Platão oferece da verdade a partir da perspectiva da Idéia, para seguir avaliando o grau de entretenimento mantido entre esta e a “formação”. Heidegger deixa claro que o problema de fundo ao qual o mito tenta responder é propriamente o problema do aparecimento seja por respeito à coisa que deve aparecer quanto daquilo que lhe permite o aparecimento: "(,,,) a questão que se coloca sempre é saber como graças a ele [o desvelamento] a coisa que aparece se torna acessível em sua evidência (éidos), como o desvelamento torna visível aquilo que se mostra assim enquanto tal (Idéa)."
Com isto o problema da verdade ascende ao seu lugar próprio de problema a ser determinado. A verdade não satisfaz mais enquanto puro e simples desvelamento; tal desvelamento deve esclarecer agora o seu modo próprio de desvelar, ou seja de fornecer o aparecimento de algo numa imagem precisa, em uma perspectiva visada (Idéa): "A 'Idéia' é a visada que retira a aparência que a perspectiva abre sobre a coisa presente."  Mas em que sentido a Idéia é concebida e possibilitada enquanto a visada apta a retirar a aparência que a sua perspectiva (idéia) abre sobre uma coisa?

Ao tomar o Sol como paradigma para expressar o sentido essencial da Idéia, Platão tem já compreendido a esta enquanto fonte de clareza para o aparecimento, a presentificação, do que quer que seja naquilo que o seja. A luminosidade da Idéia é que promove o acesso ao ente, e é o que nele se mostra enquanto o que é conhecido. A partir daí o desvelamento do ente fica tributário da luz da Idéia. E se esta é a “visada” que retira a aparência numa perspectiva, o desvelamento “passa a ser posto em “relação” com a vista, isto é torna-se “relativo” a ela. Agora a o que é visto e o ato de ver são postos em uma relação indissociável. Isto explicado através de uma representação sensível é mostrado no “mito da caverna” como a participação de “naturezas” que funda uma relação de concernência  entre a fonte de luz (o Sol) e o meio de visualização desta luz (o olho). Esta participação de natureza, que é ao mesmo tempo concedida pela própria fonte de luz, é o que torna o olho apto a participar do modo de aparecer de algo e assim acolher e perceber aquilo que aparece.

Vemos que a Idéia agora é apresentada num sentido mais eminente do que até então quando era sugerida como simples imagem do “o que” de cada coisa. Ela agora remete a investigação a um sentido seu mais essencial, que é o de concessão de uma possibilidade de participação em si mesmo habilitante: “Aquilo que concede o desvelamento às coisas conhecidas, mas dá também ao conhecer o poder (de conhecer), é a idéia do Bem.”   – sendo o Bem compreendido pelo pensamento grego enquanto aquilo que é apto ou torna algo apto. Este conceito que é concebido enquanto Idéia suprema é também o sentido essencial da Idéia. A Idéia é a Idéia de todas as idéias, na medida em que ela enquanto caráter essencial de toda e qualquer idéia torna, por seu sentido essencial (apto e habilitante), possível a aparição de todas as coisas presentes em sua inteira visibilidade (clareza). Heidegger o diz ainda melhor: “Esta Idéia, que somente pode ser chamada como “o Bem”, permanece como idéia teleutáia (suprema), porque é nela que a essência da Idéia se realiza, de forma que dela procede também, e em primeiro lugar, a possibilidade de todas as outras idéias”.

Novamente vemos a “formação” entretida na verdade agora concebida sob a perspectiva da Idéia. Para Platão, a partir do momento em que a Idéia é percebida, isto é, no momento em que as coisas são vistas em sua luz essencial, momento em que “‘o pensamento é reenviado e conduzido à unidade, ele percebe-se como decorrendo da Idéia suprema que para todos os homens (...) é manifestamente a Coisa primordial, a Causa de tudo aquilo que é bom (em seu comportamento) como de tudo o que é belo’, isto é, daquilo que se mostra àquele mesmo comportamento de tal modo que ele faz aparecer sua própria aparência naquilo que ele tem de brilhante.”  Agora o aprumo e o comportamento próprio a ser sustentado que consistem no modo próprio da “formação” deve determinar-se pelo direcionamento e manutenção do olhar da alma em direção à Idéia do Bem “porque ela torna possível o próprio Ser de toda idéia” – de toda visada e de toda perspectiva.
Se a Idéia, perfeitamente fundamentada enquanto doação (o ser-apto e tornar-apto originários) através da Idéia do Bem, pôde destituir o develamento de sua tradicional autonomia e se pôr como paradigma da verdade, a coincidência, isto é, a conformação do olhar com a aparência da coisa apresentada, deve se tornar a regra para toda a “formação”. Faz-se necessário nestes termos o aprendizado do olhar em vista do sucesso de tal coincidência. Sob esta perspectiva, a ultrapassagem dos estágios de verdade e formação (redirecionamento do olhar) ganha então a forma da retidão do olhar: “Tudo é subordinado à orthótes, a retidão do olhar. Sob esta retidão a visão e o conhecimento tornam-se co-r-retos, de modo que finalmente eles visam diretamente a Idéia suprema e se fixam nesta visada.”  Heidegger aponta aqui a ambigüidade que se manifesta na determinação platônica da essência da verdade, ambigüidade esta que testemunha a própria mudança  ocorrida nesta essência. A partir do privilégio da retidão do olhar na abordagem da essência da verdade, esta passa a ser pensada, sob o pressuposto da relação instituída pela Idéia suprema entre o conhecer e o conhecido, tanto como desvelamento do conhecido (o que significa o desvelamento já subordinado à Idéia) como também como retidão do conhecimento.

A evolução conseqüente desta torção do sentido original da verdade enquanto desvelamento concedido pelo próprio ente e sua nova concepção enquanto retidão é a eleição do entendimento enquanto juiz da verdade e da não-verdade. A participação constitutiva da própria estrutura da Idéia, que já impunha uma con-formação na qual a Idéia se articulava com as idéias (participação que Aristóteles compreendeu enquanto uma relação entretida entre gênero e espécie, após metamorfosear o sentido que estes dois conceitos guardavam na filosofia de Platão), “evolui”, pelo caráter mesmo de diferença e de proeminência da Idéia, de uma necessária conformação entre as coisas e as idéias que manifestam delas as suas essências, para a conformação entre o juízo e a coisa. A essência da verdade passa a caracterizar-se de modo absoluto pela filosofia ocidental, e isto até Hegel, enquanto “a retidão da representação que se enuncia” . A verdade é o co-r-reto por oposição ao inco-r-reto, ou seja é a reta adequação entre intelecto e coisa.

Já indicávamos acima que o projeto transcendente que caracterizava a mudança procedida da essência da verdade visava à possibilidade de fixação desta num âmbito de permanência superior a permanência possibilitada pela simples presença do ente – a superação dos entes sensíveis (mutantes) visava nada mais que a conquista dos entes imutáveis. E estes são exclusivamente as idéias no âmbito das quais é unicamente possível apreender o Ser dos entes. Assim a instituição da Idéia na essência da verdade inaugura na verdade uma nova sophia que à diferença da anterior pode oferecer um ponto de apoio para o desvelado no próprio Permanente, prescindindo mesmo da presença dos entes cuja verdade deva ser reconhecida e representada.

E da mesma forma que a verdade, o desvelamento, a partir da mudança de sua essência, ganha sentido eminente ao se fazer determinar enquanto Idéia, o comportamento regido por um olhar permanentemente dirigido para as idéias alcança a sua excelência. Tal alcance determina desde então o sentido próprio da “formação” enquanto projeto de formação do homem. O privilégio do entendimento como lugar de determinação da verdade inaugura a época da “formação” enquanto Humanismo (ainda que o termo humanismo só tenha aparecido na linguagem como questão filosófica na época da República Romana): “O início da metafísica que se observa no pensamento de Platão é, ao mesmo tempo, o início do “humanismo” (...) Humanismo designa, assim o processo – ligado ao início, ao desenvolvimento e ao fim da metafísica – através do qual o homem, em perspectiva cada vez diferentes mas sempre conscientemente, se coloca no centro do ente, sem ser ainda ele mesmo no entanto o Ente supremo.”  O projeto agora da “formação” enfim definida enquanto humanismo é permitir ao homem “libertar as suas possibilidades, chegar à certeza de sua destinação e ganhar a segurança de sua vida  [Este humanismo designa] aquilo que tem lugar como definição de um comportamento ‘moral’ ou como liberação da alma imortal, como desenvolvimento dos poderes criadores, o desabrochar da razão, cultura da personalidade, despertar do sentido de comunidade, disciplina ascética ou enfim a união apropriada de algum desses humanismos ou de todos eles”.

Dizíamos no início deste estudo que com Platão uma nova verdade era inteiramente concebida em vista de uma formação orientada nos seus termos, vimos aqui, de forma ainda muito geral, como os momentos estruturais de mudança da essência da verdade implicavam todos os momentos da fixação da formação – a mudança de direção do olhar da alma  estabelecida como exigência primordial para a possibilidade da formação acabou por revelar o seu telos em vista da determinação do homem como centro do ente, isto é, enquanto humanismo. As conseqüências nefastas desta configuração obtida pela “formação”, as diversas épocas do ocidente a vêm experimentando cada qual na sua proporção própria. Nós contemporâneos, no entanto, a experimentamos em sua configuração a mais terrível, a mais perigosa: como pura técnica. Experimentamo-la na sua configuração consumada! Mas como lembra Heidegger, assinalando com Hölderlin para o pensamento: “onde mora o perigo é aí que também cresce o que salva” , porque possamos, nós contemporâneos, suportá-lo ou não, a “época da formação se aproxima do fim [pois] há sinais de uma idade do mundo onde o que é digno de questão abre de novo as portas para se acolher à essência de todas as causas e de todos os destinamentos” .  

(por M. S.)

Sapho de Lesbos, 630 a.C. Poetisa grega

"Eu amo a doçura do mundo
O amor me concedeu, a luz resplandecente e a beleza do sol.

Parece-me ser igual aos deuses
aquele que, à tua frente, sentado, tua voz deliciosa, deperto,
escuta inclinando o rosto,
e seu riso luminoso que acorda desejos - ah! eu juro
o coração no peito extremesse de pavor,
no instante em que te vejo: dizer não posso mais uma só palavra;

a língua dilacera;
escorre-me sob a pele uma chama furtiva;
os olhos não vêem, os ouvidos zumbem;

um frio suor me recobre, um frêmito corpo
se apodera, mais verde do que as ervas eu fico;
que estou a um passo da morte;

De novo Eros me arrebata
ele, que põe quebrantos no corpo,
Dociamargo, invencível serpente..
Irremediavelmente como a noite segue a rosada aurora,
a morte segue todo o vivente até que finalmente o alcança"



 "Há quem afirme serem nove as musas. Que erro! Pois não vêem que Sapho de Lesbos é a décima?"
(Platão)

Distância e Proximidade


Filosofar significa existir a partir do fundamento. A Filosofia não é nem uma ciência entre outras, nem uma produção de visões de mundo, é mais primordial do que toda ciência e, ao mesmo tempo, mais primordial do que  cada visão de mundo. O importante é que façamos a devida justiça à ela, isto é, em filosofar, nós sempre transformamos cada uma e todas as coisas  em nós mesmos e para nós mesmos. Enquanto nos abandonarmos para trás e para frente na superfície, desdobrando máximas teóricas e práticas, ainda não estamos pensando.
A liberdade na direção do fundamento é o superar, no auge, do que nos carrega para longe e dá-nos distância.
O ser humano é um ser da distância! E somente por meio da distância real primordial, é que o ser humano na sua transcendência estabelece–se para todos os entes, e que a proximidade verdadeira com as coisas começa a crescer dentro dele. E só a capacidade de ouvir na distância que convoca o despertar da resposta naqueles que precisam estar próximos.



Martin Heidegger "Sobre a essência do fundamento"